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LIÇÃO Nº 4 – PERSEVERANDO NA FÉ

(A PARÁBOLA DO JUIZ INÍQUO OU DA VIÚVA PERSISTENTE – Lc.18:1-8)   

Na parábola do juiz iníquo, Jesus ensina-nos o dever de orar e nunca desfalecer.

 INTRODUÇÃO

– Na sequência do estudo das parábolas, estudaremos a parábola do juiz iníquo, cujo objetivo é nos ensinar sobre o dever de orar e nunca desfalecer.

 – O servo de Deus deve ter uma vida de oração e perseverança.

 I – DAS CIRCUNSTÂNCIAS DA PARÁBOLA E A PARÁBOLA PROPRIAMENTE DITA

 – Na sequência do estudo das parábolas de Jesus, estudaremos a parábola do juiz iníquo, que é contada apenas por Lucas.

É sabido que, em Lucas, as parábolas procuram demonstrar Jesus como sendo a sabedoria de Deus (Lc.11:49), algo bem próprio para um evangelho destinado aos de cultura grega, que viam na sabedoria a principal qualidade do ser humano (I Co.1:22).

 – Lucas, ao mostrar Jesus como o homem perfeito, também mostra que Jesus é a própria Sabedoria de Deus, chamando Cristo mesmo de “sabedoria de Deus”, como vemos em Lc.11:49.

Nem poderia ser diferente, uma vez que a sabedoria tem como princípio o temor do Senhor (Sl.111:10; Pv.9:10) e sobre Jesus havia o Espírito de temor do Senhor (Is.11:2), não havendo, pois, quem pudesse ser mais sábio do que o homem perfeito, gerado por obra e graça do Espírito Santo, que não tem pecado.

 – No evangelho segundo Lucas, o ministério de Jesus é apresentado numa linha mais geográfica que cronológica, apresentando primeiramente o ministério do Senhor na Galileia, para depois apresentar o Seu ministério na Judeia e em Jerusalém,

como que a mostrar que Jesus, que iniciou Sua missão na região periférica da Galileia, vai paulatinamente se aproximando da capital, onde estava não só o centro político, mas, sobretudo, o centro religioso dos judeus.

 – Esta passagem da Galileia para Jerusalém é notada em Lc.13:22, de sorte que é já neste contexto de ida a Jerusalém que encontraremos a narrativa da parábola do juiz iníquo.

Os cronologistas bíblicos Edward Reese e Frank Klassen datam esta parábola no final do ministério de Nosso Senhor, em fevereiro de 28 d.C., depois da ressurreição de Lázaro, quando havia se retirado para a aldeia de Efraim (Jo.11:54).

– Trata-se, pois, de uma parábola que foi dirigida especificamente para os discípulos do Senhor Jesus, para o Seu grupo seleto, e, diz-nos o evangelista, era um ensino voltado para o dever de orar e nunca desfalecer (Lc.18:1).

 

– De pronto, vemos que a parábola diz respeito a “deveres”  do discípulo de Cristo Jesus, o que nos faz lembrar que, ao contrário do que muitos alardeiam, a graça impõe, sim, deveres aos servos do Senhor, liberdade não se confunde com autonomia, ou seja, liberdade não significa que nós mesmos ditamos as nossas regras.

A graça traz-nos a liberdade, pois, onde está o Espírito de Deus, aí há liberdade (II Co.3:17), mas liberdade não significa ausência de regras, mas, sim, liberdade da escravidão do pecado, recuperação do livre-arbítrio dado por Deus, possibilidade de viver em comunhão e amizade com o nosso Criador.

 – Liberdade é uma “corda” que tem “duas pontas”: o livre-arbítrio ou liberdade de escolha, onde o homem pode dizer sim ou não aos chamados de Deus, como era no princípio, quando o Senhor deixou ao homem a capacidade de fazer o bem ou o mal (Gn.2:16,17) e a responsabilidade,

que é a prestação de contas pela escolha que foi feita, já que Deus é o Ser Supremo, Soberano, Aquele a quem tudo pertence (Sl.24:1), que está no absoluto controle de todas as coisas e com quem cada ser humano terá de tratar (Hb.4:13; Gl.6:7,8).

 – Deus é o Criador, o Senhor e o homem, enquanto criatura, é servo e, como tal, tem de atender às “ordens” divinas (observemos que, em Gn.2:16, o Senhor “ordena”) e isto se dá em razão da própria natureza do homem e de Deus, independentemente do pecado ter, ou não, entrado na humanidade.

Assim, não é de se surpreender que, mesmo salvo, o homem continua sob as ordens de Deus e que existam para os salvos mandamentos (At.1:2) e regras (Gl.6:16), que o apóstolo Paulo chega a denominar de “lei de Cristo” (I Co.9:21; Gl.6:2).

 – Por estar sob as ordens divinas, sob a lei de Cristo, sob mandamentos dados pelo Senhor, o salvo tem, portanto, “deveres”.

E é sobre um destes deveres que o Senhor Jesus trata na parábola do juiz iníquo, também conhecida como parábola da viúva persistente – o “dever de orar sempre e nunca desfalecer”.

 – A palavra grega utilizada para “dever” é “dei” (δει), cujo significado é “é necessário, como algo obrigatório, ser conveniente, adequado, ser necessário, ser forçoso, “é preciso que”.

Tem-se, pois, que, conforme o evangelista, a parábola tem objetivo de mostrar que é necessário, é preciso que o salvo, o discípulo de Jesus sempre ore e nunca desfaleça.

É oportuno lembrar que o Senhor Jesus, no jardim do Getsêmane repreendeu Pedro por não ter podido orar com ele pelo menos uma hora (Mt.26:40), como que a indicar um período mínimo de oração.

 – Mas não é apenas necessário orar. O ensinamento também diz que nunca devemos desfalecer, que é a palavra grega “ekkakeo” (εκκακέω), cujo significado é de “estar mau ou fraco, falhar no coração, desmaiar, estar exausto, desanimar diante das provocação, das dificuldades”.

Além de orar, o salvo não pode desanimar, não pode desistir, não pode se deixar vencer pelas dificuldades existentes.

Este mesmo conselho será o teor da última instrução dada aos discípulos: tende bom ânimo, eu venci o mundo (Jo.16:33).

 – No momento em que se encontrava o ministério do Senhor Jesus, próximo aos episódios que levariam à Sua paixão e morte, quando o Senhor acabara de realizar um portentoso milagre, como o da ressurreição de Lázaro, e diante da falsa expectativa criada pelos Seus discípulos de que brevemente se instalaria o reino messiânico (Lc.19:11), fez questão de deixar um ensino a respeito da necessidade que temos, neste mundo, de orar sempre e nunca desfalecer.

– Os discípulos, em breve, “sentiriam na pele” o significado de servir a Cristo, percebendo o ódio que o mundo nutria pelo Senhor e vendo uma aparente derrota do Senhor perante este sentimento, o que os levaria, com exceção de João, a abandonar até o Mestre momentaneamente.

Este ensino, pois, era uma prevenção do que iria ocorrer e algo que ficaria indelevelmente marcado nos corações de tantos quantos quisessem seguir a Jesus, às Suas pisadas (I Pe.2:21).

 – A parábola fala de uma viúva que morava numa cidade onde havia um juiz que não temia a Deus nem respeitava o homem, viúva esta que estava sendo injustiçada por um adversário.

Apesar de saber da iniquidade do juiz, a viúva não cessava de pedir a ele que lhe fizesse justiça e a persistência foi tanta que o juiz, mesmo admitindo que não era justo nem queria fazer justiça, resolveu, diante da insistência daquela mulher, em fazer justiça, para que ela não o importunasse mais.

Diante desta parábola, o Senhor Jesus diz que não faria Deus justiça para que os que clamarem a Ele de dia e de noite?

 II – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA (I): O JUIZ INÍQUO

 – A primeira personagem da parábola é o juiz iníquo, daí porque muitos a denominarem de “parábola do juiz iníquo”, ainda que não seja ele a pessoa que demonstra cumprir o dever de orar e nunca desfalecer.

 – Jesus diz que havia numa cidade um certo juiz. Esta indefinição, seja da cidade, seja da personagem, por primeiro, caracteriza o ensino como sendo uma parábola, ou seja, não é um fato real, um acontecimento, mas uma história da qual se extrairá uma verdade espiritual.

Ao mesmo tempo, usando de Sua sabedoria, o Senhor Jesus, embora estivesse num ambiente restrito a Seus discípulos (mas um dos mais, lembre-se, seria o traidor), deixa bem claro que não estava a se dirigir a nenhuma autoridade,

a fim de que seu dito não fosse interpretado como um desrespeito aos juízes existentes, ainda mais quando se sabia que a justiça existente deixava muito a desejar, ante as vicissitudes do sistema nos dias de Jesus, impregnado das mazelas decorrentes da política então praticada sob o domínio romano.

Temos, assim, mais uma prova de que, ao contrário do que inventam os próceres da “teologia da libertação”, Jesus jamais Se apresentou como um “líder político revolucionário” ou como um “contestador da ordem vigente”.

 – O texto parece indicar, ainda, que este era o único juiz na cidade. O sistema judicial então existente delegava a juízes previamente escolhidos a solução dos conflitos entre os cidadãos.

A dominação romana era caracterizada pela liberdade que Roma dava aos povos conquistados de manter as suas instituições, salvo nos assuntos que fossem caros aos conquistadores, como os casos políticos ou relacionados com os tributos.

No mais, os romanos procuravam não se intrometer em questões relativas aos costumes e padrões, com destaque para a religião (At.18:12-16; 25:14-22; 26:32).

Por isso mesmo, o sistema judicial judeu persistia existindo, havendo, pois, juízes nas cidades para dirimir as questões relacionadas com o dia-a-dia das pessoas e que não tinham conotações políticas ou tributárias.

 – Este juiz, porém, tinha duas características funestas: não temia a Deus nem respeitava o homem (Lc.18:2).

Não temer a Deus significa não obedecer ao Senhor, ter uma vida sem qualquer preocupação em agradar a Deus, em fazer-Lhe a vontade.

Tratava-se, portanto, de uma pessoa ímpia, que não se importava com o seu relacionamento com o Senhor. E isto, apesar de ser juiz e, como tal, aplicar precisamente a lei de Deus, a lei que Deus havia dado ao povo de Israel por meio de Moisés.

– Que extrema tristeza quando se verifica que aquele que devia dar exemplo é exatamente o que transgride as regras e as normas de comportamento.

Era esta a situação lamentável em que se encontrava o povo judeu nos dias do ministério do Senhor Jesus, onde os considerados “exemplos”, que eram os fariseus, eram, precisamente, os que descumpriam a lei, os maiores e principais infratores, pois diziam mas não praticavam o que diziam (Mt.23:3).

 – O juiz, embora tivesse como ofício aplicar a lei de Moisés, não temia a Deus e, por conseguinte, não cumpria a própria lei que mandava aplicar.

Um paradoxo que levava à iniquidade, ou seja, ao estado de injustiça, pois, com um juiz que não temia a Deus, jamais se teria condições de se fazer justiça naquela cidade.

 – O Senhor Jesus reflete aqui a situação que se encontra o mundo onde vivemos. Depois do dilúvio, o Senhor entregou ao homem o “governo” da sociedade, deu ao homem poder para estabelecer leis e regras que disciplinassem a convivência entre os homens (Gn.9:1-6; Rm.13:1-7), para que não se tivesse o estado de calamidade total que fez com que Deus tivesse de destruir a humanidade com o dilúvio (Gn.6:5-12).

 – No entanto, este governo é corrompido, pois o mundo está no maligno (I Jo.5:19), de modo que não há, logo na comunidade única pós-diluviana, tivemos governantes que não temeram a Deus, como foi o caso de Ninrode, que desobedeceu abertamente à ordem divina de povoar a Terra (Gn.9:7; 11:3,4), e isto trouxe como consequência a injustiça, a iniquidade, pois o pecado é iniquidade (I Jo.3:4; 5:17).

 – Assim, a injustiça é uma constante nas sociedades humanas, devendo as autoridades, máxime as autoridades judiciais, minorar esta injustiça, fazendo prevalecer as normas e regras estatuídas pelo próprio Deus para que haja ordem e paz sociais, mas, quando aquele que é incumbido de fazê-lo é o primeiro a não temer a Deus, temos uma situação extremamente difícil e desalentadora, que somente gera suspiro entre a população (Pv.29:2).

 – Além de não temer a Deus, o juiz também não respeitava o homem. Aqui a palavra grega é “entrepo” (εντρέπω), cujo significado é o de “inverter, respeitar, prestar reverência”. Além de não sentir qualquer receio de contrariar a vontade de Deus, de não reconhecer a soberania do Senhor, o juiz também não levava em consideração o ser humano, não prestava qualquer respeito ao próximo.

 – Não é de se admirar que o juiz iníquo também não respeitasse o ser humano, pois, quem não teme a Deus, logicamente não irá respeitar o ser humano, pois o homem é imagem e semelhança de Deus, é o representante de Deus aqui na Terra e, portanto, quem não teme a Deus não irá, igualmente, respeitar o homem.

 – Muitos acham ser possível defender o ser humano, ter uma atitude “humanista” sem que, para tanto, se tenha de crer em Deus ou, o que é muito mais importante, temer a Deus.

Trata-se de uma atitude impossível, porquanto somente pode levar o homem em consideração aquele que teme a Deus, pois o Senhor fez do homem Sua imagem e semelhança e não se pode jamais respeitar o homem senão se tiver esta dimensão.

 – Toda a ideia de “direitos humanos” parte da noção de “dignidade da pessoa humana” e a pessoa humana somente é levada em conta quando admitimos e constatamos que o homem é imagem e semelhança de Deus.

Não é à toa que todas as filosofias e doutrinas que se neguem a reconhecer Deus são, precisamente, as que mais vilipendiam e desconsideram a pessoa humana, como, por exemplo, estão a demonstrar os regimes comunistas ao longo da história que, em virtude de seu ateísmo, foram os responsáveis pelas maiores atrocidades cometidas contra os seres humanos, a começar por milhões e milhões de mortes.

 – Naquela cidade, o juiz não temia a Deus nem respeitava o homem e, portanto, o desalento era generalizado, não havia o que se esperar em termos de justiça num ambiente assim.

 – O juiz iníquo representa o mundo onde vivemos, um mundo em que o sistema político, embora criado para fazer justiça, para providenciar que a ordem e a paz sociais se estabeleçam e, deste modo, não se encha a terra novamente de violência,

numa situação insustentável como a encontrada nos dias de Noé, tem se desvirtuado e, em virtude de o pecado permanecer dominando, é incapaz de gerar o estado de coisas pretendido pelo Senhor, a demonstrar, deste modo, a incapacidade do homem para estabelecer a justiça e a paz.

 – O juiz iníquo representa a impossibilidade humana de trazer justiça e paz, a insuficiência e incapacidade do ser humano de atingir os objetivos almejados de felicidade e bem-aventurança na vida em sociedade e, portanto, a extrema necessidade de que o próprio Deus restaure esta ordem social, pessoalmente, através da pessoa do Filho, que Se fez homem, o que, certamente, ocorrerá quando da instalação do reino milenial de Cristo.

 – Por isso, em sua última instrução antes de Sua paixão e morte, o Senhor Jesus foi claríssimo ao avisar os Seus discípulos de que não poderiam alimentar ilusões quanto a este mundo, dizendo que, nele, somente teremos aflições (Jo.16:33).

 II – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA (II): A VIÚVA PERSISTENTE

 – A segunda personagem da parábola é a viúva persistente. Assim como o juiz, é ela identificada como sendo “uma certa viúva”, numa indefinição que demonstra, a uma, que se estava diante de uma parábola; a duas, que, frente ao Senhor, não há acepção de pessoas (Dt.10:17; At.10:34).

Assim, embora o juiz fosse uma autoridade diante dos homens, e das maiores, senão a maior autoridade, é ele tratado como “um certo juiz”, enquanto que a viúva, sendo pessoa da mais “tradicional” das classes de desamparados, uma verdadeira “excluída social”, é tratada de igual modo, a revelar que, para Deus, ao contrário do que ocorria com o juiz iníquo, as pessoas, sem exceção, recebem igual consideração.

 – Ao contrário do juiz, a viúva era uma pessoa que ocupava uma das mais baixas posições na sociedade.

Viúva era sinônimo de desamparada, pois, numa sociedade onde a mulher já não ocupava posição de destaque, ser viúva era uma tragédia, pois as mulheres viúvas estavam completamente desamparadas, já que haviam perdido seus maridos, que eram a sua fonte de subsistência, já que não havia lugar para as mulheres no mercado de trabalho.

 – Vemos, bem, a situação desesperadora das viúvas na medida que é o próprio Deus quem promete amparálas, dizendo-se Aquele que faria justiça a ela (Dt.10:18), como a indicar, portanto, que se tratava de uma classe de pessoas que tinha de confiar em Deus, já que, no sistema em que vivia, era uma pessoa completamente sem ajuda e sem socorro.

– A viúva, portanto, por ser viúva, era, pela sua própria condição, alguém sem recursos e que dependia da solidariedade do próximo e do cuidado divino, alguém sem amparo, sem qualquer respaldo na sociedade, uma completa dependente da Providência Divina.

 – A viúva simboliza aqui a real situação do ser humano, que é completamente dependente do seu Criador.

Embora seja dotado de inteligência, seja imagem e semelhança de Deus (ainda que distorcida por causa do pecado), o homem não tem a mínima condição de definir coisa alguma de sua vida sem a anuência, a aquiescência, a misericórdia e a graça de seu Criador.

 – A viúva revela, assim, a incapacidade humana para “tomar conta da sua própria vida”, a total insuficiência do homem para poder dirigir os seus próprios passos nesta caminhada chamada vida, tanto no aspecto material e no momento de nossa peregrinação terrena, como também, e com muito maior intensidade, no aspecto espiritual, quanto à eternidade que nos aguarda.

 – Como se não bastasse esta situação já difícil da viúva, simplesmente por ser viúva, na parábola, é dito que ela sofria injustiça por parte de um adversário.

Se tudo estivesse bem, já estaria mal, porque a situação da viúva, repetimos, era sempre de desamparo e de precariedade, alguém que não tinha como se sustentar por si só e que dependia, assim, da solidariedade do próximo e do cuidado divino.

 – Entretanto, além de passar tal experiência de desamparo e de precariedade, a viúva ainda tinha uma situação específica, não minudenciada na parábola, mas onde tinha sido ela injustiçada por um adversário, que, certamente, gozava de uma posição privilegiada em relação à viúva.

 – É interessante notar que, ainda que a viúva fosse pessoa de posses, e não é o caso que se tem na parábola, a viúva condições não teria de poder suplantar esta situação de injustiça.

Basta ver, aliás, como o Senhor amparou a sunamita quando esta retornava do exterior, onde passara, por aviso divino por meio do profeta Eliseu, os sete anos em que houve fome em Israel.

A sunamita (que, muito provavelmente, já estava viúva nesta época, já que seu marido era bem mais velho que ela e nada se fala a respeito dele no episódio) somente pôde retomar as terras que haviam sido invadidas porque Deus fez com que ela, ao se encontrar com o rei, tivesse o testemunho de Geazi a seu favor (II Rs.8:1-6), a demonstrar como era difícil que uma viúva em situação de injustiça pudesse restaurar a situação de justiça.

 – Esta viúva, ao contrário da sunamita, não tinha posses, não tinha qualquer prestígio, e estava, além do mais, sendo injustiçada por um adversário e, o que é pior, numa cidade onde o juiz não temia a Deus nem respeitava o homem.

 – Todos sabiam que o juiz era iníquo, não havia qualquer esperança na cidade que se fizesse justiça e, num clima assim, os errados costumam “abrir as asinhas”, animam-se a transgredir a lei, são estimulados e incentivados a burlar as regras e a injustiça aumenta ainda mais.

Tem-se um “círculo vicioso”, algo que é bem conhecimento dos brasileiros que, lamentavelmente, vivem uma quadra de sua história onde a impunidade reina e o aparelho judiciário demonstra toda a sua ineficiência e precariedade, o que retroalimenta ainda mais a impunidade e a violência.

 – O quadro era, portanto, desalentador. Sem qualquer prestígio, ocupando a base da sociedade, tendo à frente uma autoridade iníqua, tudo contribuía para que a viúva se conformasse com aquela situação de injustiça, que se dobrasse à maldade de seu adversário.

No entanto, contra todas as circunstâncias, a viúva foi pedir ao juiz que este fizesse justiça contra o adversário dela (Lc.18:3).

 

– A viúva foi fazer seu pedido ao juiz, mesmo sabendo ser ele iníquo e que não respeitava o próximo.

Neste gesto, a viúva demonstrava ter confiança no sistema judicial, crer que havia possibilidade de se fazer justiça.

Cria na lei e isto, para o contexto da cultura judaica, era crer que a vontade de Deus prevaleceria, pois a lei nada mais era que a vontade do Senhor, tanto que Paulo a denomina de “mandamento justo, santo e bom” (Rm.7:12).

 – A viúva também cria que o sistema judicial, como todo o corpo de autoridades, havia sido constituído por Deus (Rm.13:1,2) e que o próprio Deus era, em última instância, Aquele que lhe faria justiça (Dt.10:18) e que havia um compromisso dos israelitas em jamais perverter o direito da viúva (Dt.27:19).

 – Assim, muito mais que crença nas instituições, a viúva demonstrava ter confiança em Deus, crer que Deus estava no controle de todas as coisas e que, desta maneira, ainda que o juiz fosse iníquo, faria justiça em seu favor.

 – O texto não diz mas podemos inferir que não era fácil àquela viúva chegar diante do juiz. Ela era pessoa necessitada, que compunha a ralé da sociedade e, como tal, não tinha como agendar audiências com o juiz, fazer-se representar por advogados ou ter quem lhe pudesse levar à presença do juiz a fim de lhe conferir um atendimento especial.

 – O mais provável é que aproveitava oportunidades fortuitas, quando da chegada ou da saída do juiz do seu local de trabalho, em alguns instantes, para reclamar o seu direito, sendo, muito certamente, tratada com desdém pelo magistrado, se é que algum tratamento tinha da parte dela. Quantas vezes não foi retirada da proximidade daquele homem, proximidade sempre obtida com muita dificuldade e sofrimento?

 – No entanto, a viúva tinha uma qualidade que a identifica na parábola: ela era persistente. Dia após dia, desdém após desdém, dificuldade após dificuldade, desprezo após desprezo, a viúva não cessava de clamar perante o juiz que fizesse ele justiça contra o adversário dela.

 – As circunstâncias duradouras, como a sua condição social desfavorável, bem como as circunstâncias momentâneas, como as situações em que conseguia clamar ao juiz, embora fossem todas adversas e desanimadoras, não mudaram o comportamento da viúva, que continuou a clamar ao juiz que fizesse justiça contra o seu adversário. E foi esta persistência fundamental para que ela alcançasse o seu objetivo.

 III – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA (III): O ADVERSÁRIO E O ALCANCE DA JUSTIÇA

 – A terceira personagem da parábola é o adversário, do qual nada se fala, sendo tão somente mencionado.

O texto diz que se tratava de um “adversário da viúva”. A viúva pedia que se fizesse justiça contra ele, de modo que podemos depreender que o adversário da viúva havia praticado uma injustiça.

 – A palavra utilizada é “antidikos” (αντίδικος), cujo significado é o de “…opositor (em um litígio judicial), especialmente Satanás (como o arqui-inimigo…” (Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Dicionário do Novo Testamento, verbete 476, p.2073). Tem-se, de pronto, pois, pela própria palavra empregada quem representa esta personagem.

 – Vivemos no mundo, embora não sejamos dele (Jo.17:11,16), e este mundo está no maligno (I Jo.5:19), cujo príncipe é Satanás, por isso mesmo chamado de “príncipe deste mundo” (Jo.12:31; 14:30; 16:11).

Daí porque se dizer que não lutamos contra a carne e o sangue, mas, sim, contra as hostes espirituais da maldade (Ef.6:12). Não podemos jamais nos esquecer que, neste mundo, temos um adversário, que sempre batalha contra nós, que sempre quer nos prejudicar, nos causar males.

 – Diante de tal certeza, temos de lembrar que somos menores do que este adversário, que, afinal de contas, é um anjo caído e os seres humanos são menores que os anjos (Sl.8:5), pois maior é o que está conosco e não nós mesmos (I Jo.4:4).

Temos um adversário e este adversário sempre fará injustiça para conosco e, por isso, devemos recorrer sempre ao reto e justo juiz de toda a Terra para que possamos prevalecer contra tal adversário (Gn.18:25).

 – A viúva sabia que era inferior ao adversário e que necessitava que o juiz, que não era o “justo juiz”, mas o juiz iníquo era o único que poderia resolver o seu problema e, portanto, apesar de todas as circunstâncias serem contrárias, continuou a insistir, a persistir, a não desistir.

 – O juiz iníquo chegou ao limite de sua paciência. Sabia que não temia a Deus nem respeitava o homem.

Não havia se comovido nem um pouco com as súplicas da viúva, mas já estava exausto de ouvir o seu clamor. A insistência da viúva havia se tornado uma importunação (Lc.18:5), a palavra grega “hupopiadzo” (υπωπιάζω), cujo significado é “atingir debaixo do olho, esbofetear, nocautear um antagonista,

provocar ou aborrecer buscando a obediência, subjugar as próprias paixões, controlar, cansado”, ou seja, antes que a insistência daquela viúva viesse a solapar a própria autoridade daquele juiz que, confrontando inúmeras vezes com esta situação, desmascarava-se como uma pessoa sem o mínimo respeito pelo homem e sem temor a Deus.

A insistência daquela viúva tornava escancarado o que todos sabiam, mas tal evidência acabaria por colocar em xeque todo o sistema hipócrita então vigorante naquela cidade, onde o juiz era autoridade para fazer justiça, embora nunca a fizesse.

 – O juiz, então, resolveu fazer justiça para que a situação de injustiça em que vivia se mantivesse intacta, para que o clamor da viúva não viesse a criar um incômodo que levasse à queda do próprio sistema iníquo existente. Era o caso de “deixar os anéis para que os dedos ficassem”.

 IV – O ENSINAMENTO DA PARÁBOLA

 – Jesus, então, volta-se para Seus discípulos e demonstra que, se, naquela cidade, o juiz iníquo foi obrigado a fazer justiça para manter as aparências em virtude da insistência de uma viúva, que era a escória da sociedade, quanto mais poderiam fazer os servos de Deus se insistissem em clamar por justiça a Deus, o justo e reto juiz de toda a Terra?

 – Se a viúva, num ambiente de injustiça, em completo desamparo, sem qualquer esperança de obter justiça, pela sua insistência e perseverança, alcançara a justiça, como não se conseguiria obter justiça neste mundo quando se recorresse ao Senhor, o juiz de toda a terra, o Senhor, que é Justiça Nossa (Jr.33:16)?

– O Senhor diz que os Seus servos têm o dever de orar e nunca desfalecer pois, ao contrário daquela viúva, que tinha pela frente um juiz iníquo, nós temos a garantia de que o Senhor é o nosso juiz e que Ele fará justiça a todos os que O temem, pois está no absoluto controle de todas as coisas.

 – A oração é este clamor por justiça e não podemos nos esquecer de que Jesus é o renovo de justiça que brotou de Davi e que fará justiça e juízo em toda a Terra (Jr.33:15). Não temos porque nos calar diante das injustiças que sofremos da parte do nosso adversário, pois, embora pobres e necessitados, temos a convicção de que o Senhor cuida de nós (Sl.40:17).

 – Como diz John Nelson Darby: “…Porém, em presença de todo o poder dos inimigos e opressores (porque os havia, como vimos, visto correr-se o risco de perder a própria vida), havia um recurso para o Remanescente aflito: A perseverança em oração, em todo o tempo e em todo o lugar.

Este é o recurso do fiel, do homem fiel, se ele, em seu coração, compreender que é mesmo assim. Deus vingará os Seus eleitos, embora ponha à prova a fé deles.…” (Estudos sobre a Palavra de Deus: Lucas-João. Trad. de Martins do Vale, p.112).

 – A oração é a atitude de quem se reconhece incapacitado, insuficiente e carente do Senhor e, a exemplo da viúva persistente, não tem outra coisa a fazer senão pedir pelo auxílio d’Aquele que é maior do que está no mundo. Oramos porque sabemos de nossa dependência de Deus; oramos, porque confiamos no Senhor; oramos, porque é nosso dever orar e nunca desfalecer.

 – Diante das adversidades deste mundo, no qual temos aflições, precisamos ter bom ânimo, ter esperança e confiança em Deus, porque Jesus venceu o mundo, a nos mostrar que Ele é maior do que o adversário.

 – Quem não ora revela não ter fé em Deus e quem não tem fé não pode jamais agradar ao Senhor (Hb.11:6).

Quem não ora, acha-se autossuficiente, independente de Deus e quem age deste modo é, na verdade, um desgraçado, ou seja, alguém que não tem a graça do Senhor e, como tal, é rejeitado por Cristo (Ap.3:16,17).

 

– Como afirma Agostinho, com esta parábola, “…o Senhor dá a conhecer que se a fé está faltando, a oração é inútil. Portanto, quando oramos, acreditamos e oramos para que a fé não falhe. A fé produz oração e a oração produz a firmeza da fé” (Cátena áurea, end.cit.).

 – Os que buscam vingar-se dos que lhes causam males são daqueles que não oram, pois, ao fazerem isto, estão a descrer que Deus, e somente Ele, pode praticar a justiça.

A vingança pertence tão somente ao Senhor (Dt.32:35; Rm.12:19) e não podemos querer “fazer justiça com as próprias mãos”.

Ao clamarmos a Deus por justiça, reconhecemos que só a Ele pertence a justiça e, mais do que isto, que o responsável pelos males não é aquele que está sendo usado pelo maligno, mas o próprio maligno, o adversário de nossas almas.

Como afirma Agostinho: “…Deve ser entendido, portanto, que a vingança que os justos pedem é a ruína de todos os maus. Estes perecem de duas maneiras.

Ou retornando à justiça, ou perdendo poder através de tormentos. Portanto, mesmo que todos os homens se convertessem a Deus, o demônio continuaria a ser condenado no fim do mundo.

E é dito, não sem razão, que os justos, desejando este fim, querem vingança.” (TOMÁS DE AQUINO. Cátena áurea. Lc.18:1-8. Disponível em: http://hjg.com.ar/catena/c577.html Acesso em 20 ago. 2018) (tradução de texto em espanhol pelo Google).

– Por isso, guarida alguma na Palavra de Deus tem a chamada “oração contrária”, uma verdadeira “macumba evangélica”, em que se pede o mal do próximo.

Devemos amar nossos inimigos e pedir a Deus o seu bem, para que conheçam a Cristo e se livrem do poder do maligno. 

A atitude do servo do Senhor deve ser a recomendada por Cirilo de Alexandria (378-444): “Quantas vezes formos ofendidos, devemos considerar que é glorioso esquecermos esses males; e quantas vezes eles pecam, ofendendo a glória de Deus aqueles que fazem guerra contra os ministros do dogma divino, devemos ir a Deus pedindo ajuda e clamando contra aqueles que rejeitam a Sua glória” (Cátena áurea.end. cit.), não no sentido de obter-lhes a destruição, mas a sua salvação.

 – Somente quem se considera dependente do Senhor é que poderá ser admitido nas mansões celestiais, pois é quem age desta maneira que se submete não só ao senhorio de Cristo como também a fazer com Ele uma unidade (Jo.17:21-23).

Somente estabelece esta unidade quem, a exemplo do que diz conhecido hino avulso, sabe que Cristo é tudo e nós, uma nulidade, pois “Desde que minha vida eu dei a Ele, minha nulidade ele escondeu”.

 

– A perseverança na oração exprime a perseverança na fé, como diz o título da nossa lição e quem persevera na fé, mantém a fé obtida no início da vida espiritual, certamente chegará ao epílogo desta jornada, que é a glorificação e, por isso mesmo, disse Nosso Senhor que quem perseverar até o fim será salvo (Mt.24:13). 

 – Por isso, pergunta o Senhor, ao término desta parábola, se, quando o Filho do homem vier, porventura achará fé na Terra (Lc.18:8).

Como diz Darby: “…Esta era a solene questão, cuja resposta era deixada à responsabilidade do homem. Questão que implica a ideia de que dificilmente se poderia encontrar fé na Terra, embora ela devesse existir aqui. Não obstante, onde houver fé, ela será agradável Àquele que a procura, e nunca ficará desapontada nem confundida.” (ibid.).

 Ev.  Caramuru Afonso Francisco

Fonte: http://www.portalebd.org.br/classes/adultos/2981-liao-4-perseverando-na-fe-i

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