LIÇÃO Nº 4 – RESGUARDANDO-SE DE SENTIMENTOS RUINS
INTRODUÇÃO
– Na sequência do estudo do sermão do monte, analisaremos hoje o ensino de Jesus sobre o homicídio e sobre as contendas entre as pessoas.
– Temos de ver no próximo a imagem e semelhança de Deus.
I – O ENSINO DE JESUS É NOVO, MAS NÃO INOVADOR
– Depois de ter mostrado que os Seus discípulos têm de estar num patamar espiritual superior ao dos escribas e fariseus, que o reino de Deus é mais exigente que o “reino da lei”, Cristo vai como que demonstrar esta superioridade e esta maior exigência e, para tanto,
vai analisar alguns pontos da lei de Moisés, fazendo um paralelo entre o que era ensinado pelos escribas, que eram os “doutores da lei”, aqueles que conheciam com profundidade as Escrituras, e pelos fariseus, que eram tidos e havidos, pelo povo, nos dias de Jesus, como “exemplares cumpridores da lei”, como os mais “santos” entre os israelitas, e o que seria exigido aos discípulos de Jesus.
– No sermão do monte, vamos observar, claramente, que as prescrições legais, as interpretações dadas pelos “especialistas”, os raciocínios humanos são completamente insuficientes e insatisfatórios para moldar uma conduta e um comportamento que agradem a Deus.
Para que tenham um caráter agradável ao Senhor, indispensável que tenham uma radical transformação, o que se obtém mediante a fé em Jesus, a regeneração, a justificação e santificação decorrentes da salvação.
– O Senhor Jesus começa a sua comparação entre a Sua doutrina e o entendimento dos “antigos” falando a respeito do sexto mandamento proferido por Deus no Monte Sinai, o primeiro mandamento da segunda tábua, que trata dos mandamentos relacionados ao próximo, que é o mandamento que proíbe o assassinato: “Não matarás”.
– Por primeiro, é interessante ver a expressão de Jesus, que será repetida algumas vezes no sermão: “Ouvistes o que foi dito aos antigos”.
Cristo nitidamente mostra que agora estamos em um novo instante do plano de Deus para o homem. Não é mais o “antigo”, mas o “novo”. Não será à toa que, ao instituir a ceia do Senhor, Jesus dirá que estava a instituir “a nova aliança no Seu sangue” (Mt.26:28; Mc.14:24; Lc.22:20; I Co.11:25).
– Paulo, mesmo, dirá, posteriormente, que somos ministros de “um novo testamento” (II Co.3:6), a indicar, portanto, que estamos em um novo momento da história da redenção, inaugurado por Jesus, o mediador deste “novo testamento” (Hb.9:15; 12:24).
– O apóstolo João, inclusive, também fala disto, ao dizer que os servos de Cristo estão sob um “mandamento novo” (I Jo.2:8), ainda que este “mandamento novo” seja também o “mandamento antigo” (I Jo.2:7).
– E é precisamente o que notamos na expressão do Senhor Jesus. Ele vai falar do que foi dito “aos antigos”, mostrando que estamos num “tempo novo”.
Mas Ele não vai dizer que o que foi dito é “antigo”, mas, sim, que o que foi dito aos antigos tem de ser bem compreendido, deve ser interpretado de forma radical, ou seja, até a raiz, de modo completo e íntegro.
– Não estamos mais no tempo em que o povo escutou de longe o que foi dito por Deus e quis se manter longe, recebendo de um medianeiro o que foi dito pelo Senhor.
Estamos agora aos pés do Mestre, no cume do monte, próximos a Ele, de modo que é, assim como é profunda e completa nossa relação com o Senhor, por meio do Seu Cristo, também deve ser completa e profunda a nossa compreensão e a prática dos mandamentos.
– O mandamento não muda, porquanto provém de um Deus imutável, é o “mandamento antigo”. Entretanto, em Cristo, tendo obtido a libertação do pecado, não temos mais qualquer separação em relação ao Senhor e, por isso, podemos cumprir os mandamentos, conhecendo-os de um modo “novo”, que era, até então, inacessível a nós.
– Esta nova compreensão dos mandamentos, agora tornados a “lei do reino de Deus”, também nos mostra que Deus não permite que soframos tentação maior que a podemos suportar (I Co.10:13).
Sem que Jesus viesse remir a humanidade, pagar o preço dos pecados, jamais se conseguiria cumprir a lei e, deste modo, não se poderia exigir a completude, a integridade do sentido do mandamento.
Agora, com a vinda de Cristo e a remissão, não há mais obstáculo algum para se exigir dos salvos mais do que se exigia antes.
– Não é por outro motivo, pois, que o Senhor Jesus diz que, no juízo, haverá mais rigor para os moradores da Galileia do que para os moradores de Sodoma e Gomorra (Mt.11:20-24), porque estes, gentios que eram, não tinham a mínima noção da lei e do seu cumprimento em Cristo como os galileus que foram testemunhas presenciais do ministério terreno de Jesus, e também seremos julgados com muito maior rigor do que eles se desprezarmos o Evangelho depois de tê-lo conhecido (II Pe.2:20).
II – O ENSINO DE JESUS SOBRE O HOMICÍDIO
– Os “antigos” disseram “não matarás”. Na verdade, quem o disse foi Deus no monte Sinai, mas os doutores da lei interpretavam este mandamento como sendo “não assassinar”, ou seja, “não matar alguém com vontade de o fazer, derramando o seu sangue”.
– O sexto mandamento é “Não matarás” (Ex.20:13; Dt.5:17). A palavra original hebraica é “retsach”, cujo significado é o de “assassinar”, ou seja, matar de forma voluntária, de modo premeditado, com a intenção de eliminar a vida do próximo, o que, na linguagem jurídica hodierna, corresponde ao chamado
“homicídio doloso”, ou seja, com a vontade livre e consciente de matar.
– A palavra “assassinar” tem origem árabe. Como explica o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: “…antepositivo, do árabe ḥaxxīxīn ‘consumidor de haxixe’, derivado do árabe haxix ‘cânhamo’, pelo italiano assassino, era o nome por que eram conhecidos, no século XI, os membros de uma seita xiita ismaelita fundada (cerca de 1090) pelo persa Hasan ibn al-Sabbah, os quais, embriagados pelo haxixe, costumavam assassinar chefes cristãos ou muçulmanos”.
– A Declaração de Fé das Assembleias de Deus assim diz a respeito deste mandamento: “…O sexto mandamento, ‘não matarás’, significa ‘não assassinar’. Por esse mandamento, Deus proíbe o assassinato e busca proteger a vida. O direito à vida é um bem pessoal e inalienável; sua preservação e proteção fazem parte de nossa responsabilidade como administradores da vida…” (Cap.XVIII.5, p.159).
– O homicídio é o primeiro crime noticiado na humanidade, como vemos no capítulo 4 de Gênesis, quando Caim matou o seu irmão Abel (Gn.4:8), crime pelo qual o próprio Deus questionou Caim, que foi amaldiçoado por este ato, visto que o sangue de Abel clamava por vingança diante do Senhor (Gn.4:10,11).
OBS: “A Escritura, no relato do assassinato de Abel por seu irmão Caim, revela, desde o começo da história humana, a presença da cólera e da cobiça no homem, consequências do pecado original. O homem se tornou inimigo de seu semelhante.
Deus expressa a atrocidade deste fratricídio: “Que fizeste? Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar por mim. Agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão” (Gn 4,10-11) (§ 2259 CIC).
– Notamos, de pronto, pois, que a prática do homicídio, o derramamento do sangue humano exige, da parte de Deus, que se faça justiça, que se opere a vingança divina, pois se trata de um ato extremamente grave, pois é a retirada do bem maior do ser humano, que foi criado à imagem e semelhança de Deus, de modo que, como dizem os rabinos judeus, quem mata uma pessoa está como que diminuindo a presença de Deus no mundo.
– O mandamento proíbe a prática do homicídio, ou seja, que um homem seja morto por outro. Os rabinos judeus entendem que este mandamento já se encontrava nos denominados “sete preceitos dos descendentes dos filhos de Noé”, pois, em Gn.2:16, quando o Senhor ordena ao primeiro casal não comer da árvore da ciência do bem e do mal, é dito que ele se dirige “ao homem” e, portanto, aqui está estabelecida a dignidade do homem como sua imagem e semelhança, estando, pois, proibido o homicídio.
OBS: “A Escritura determina com precisão a proibição do quinto mandamento: “Não matarás o inocente nem o justo” (Ex 23,7).
O assassinato voluntário de um inocente é gravemente contrário à dignidade do ser humano, à regra de ouro e à santidade do Criador. A lei que o proscreve é universalmente válida, isto é, obriga a todos e a cada um, sempre e em toda parte.” (§ 2261 CIC).
– Por isso mesmo, após o dilúvio, o Senhor como que rememora este mandamento a Noé, dizendo, claramente:
“E certamente requererei o vosso sangue, o sangue das vossas vidas; da mão de todo animal o requererei; como também da mão do homem e da mão do irmão de cada um requererei a vida do homem.
Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado, porque Deus fez o homem conforme a Sua imagem” (Gn.9:5,6).
– Como bem afirma C.H. Brown: “…A norma divina quanto a tirar a vida de outro ser humano não é menos estrita sob a revelação cristã do que o foi sob o judaísmo. Não se pode tolerar o homicídio na dispensação cristã.…” (Os dez mandamentos, p.13).
– No entanto, o Senhor Jesus, como fez em relação a toda a lei de Moisés, ao tratar deste tema, aprofundou sobremaneira este mandamento, levando-o à sua plenitude.
– Por primeiro, vemos a grande importância deste mandamento já na circunstância de que o Senhor Jesus dele trata em primeiro lugar ao iniciar a Sua análise sobre os mandamentos no sermão do monte. É o primeiro tema de que trata na seção do Seu sermão ético em que passou a comparar a lei de Moisés e o modo como era entendida pelos escribas e fariseus e a interpretação do reino de Deus.
– Em Mt.5:21-26, o Senhor Jesus trata do sexto mandamento à luz da “lei de Cristo”, do patamar superior da ética do reino de Deus, “in verbis”: “Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento.
Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo.
Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.
Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo”.
– Conforme se verifica, o Senhor Jesus não teve em conta apenas impedir o derramamento de sangue, que era o alvo constante já do preceito inibitório do homicídio conforme dito a Noé (Gn.9:5,6) ou do sentido dado ao sexto mandamento pelos escribas e fariseus, mas foi além,
ao exigir que o mandamento se aplicasse desde o coração, desde o íntimo do homem. Não bastava que não se derramasse sangue do próximo, mas passou a ser necessário, também, que não houvesse ódio nem malignidade em relação ao próximo.
– Como diz João Calvino: “…Se tens em lembrança que Deus está assim a falar como o Legislador, pondera, ao mesmo tempo, que por esta norma ele quer regular-te a a1ma.
Pois seria risível que esse que esquadrinha as próprias cogitações do coração humano e nelas particularmente se detém, nada mais instruísse à verdadeira justiça senão o corpo.
Portanto, por esta lei não só se proíbe o homicídio do coração, mas também se prescreve a disposição interior de conservar-se a vida de um irmão. A mão, de fato, perpetra o homicídio; concebe-o, porém, a mente, enquanto é impregnada pela ira e pelo ódio.
Vê se te possas irar contra um irmão sem que ardas em desejo de ir à forra. Se não te podes contra ele irar, então nem mesmo odiá-lo, uma vez que o ódio outra coisa não é senão ira inveterada. Ainda que o dissimules e através de vãos subterfúgios tentes desembaraçar-te dele, onde está a ira ou o ódio, aí está a disposição maléfica.
Se persistes em tergiversar, já foi pronunciado pela boca do Espírito que é homicida aquele que em seu coração odeia ao irmão [1Jo 3.15]; já foi pronunciado pela boca do Senhor Jesus Cristo que é passível a juízo aquele que se ira contra seu irmão, que é passível ao tribunal aquele que tenha dito: raca; que é passível à Gehena de fogo aquele que tenha dito: idiota [Mt 5.22].…”(op.cit., p.162).
OBS: Oportuno aqui transcrever o que diz o Catecismo da Igreja Romana: “Ao lembrar o preceito “Tu não matarás” (Mt 5,21), Nosso Senhor pede a paz do coração e denuncia a imoralidade da cólera assassina e do ódio.
A cólera é um desejo de vingança. “Desejar a vingança para o mal daquele que é preciso punir é ilícito, mas é louvável impor uma reparação “para a correção dos vícios e a conservação da justiça”.
Se a cólera chega ao desejo deliberado de matar o próximo ou de feri-lo com gravidade, atenta gravemente contra a caridade, constituindo pecado mortal.
O Senhor disse: “Todo aquele que se encolerizar contra seu irmão terá de responder no tribunal” (Mt 5,22).” (§ 2302 CIC).
– Com efeito, o Senhor Jesus ampliou sobremaneira este preceito, pois, como diz o Catecismo Romano, se, de um lado, proíbe que matemos alguém, de outro, “…nos é ordenado: Tratar os inimigos com cordial amizade, ter paz com todos os homens, levar com paciência todos os sofrimentos.…” (op.cit., III, 6, § 2º, p.457).
Ou, ainda, “…O cristão, porém, pela doutrina de Cristo conhece o sentido espiritual da Lei, que de nós exige não só mãos puras, mas também um coração casto c ilibado. ‘” Ele não pode, de modo algum, contentar-se com o que os judeus julgavam cumprir com bastante perfeição.…” (op.cit. III, 6, § 11, p. 459).
– O derramamento do sangue é visto por Nosso Senhor apenas como uma consequência visível de algo muito mais pernicioso e que deve ser debelado, que é o ódio contra o próximo.
Somente mataremos alguém se o odiarmos, se não o amarmos e, portanto, o cumprimento do sexto mandamento exige esta atitude de amarmos o próximo, de não o odiarmos, de não permitirmos que nasçam ressentimentos, mágoas em nossos corações.
OBS: Ainda reproduzindo o Catecismo da Igreja Romana por sua biblicidade: “O ódio voluntário é contrário à caridade. O ódio ao próximo é um pecado quando o homem quer deliberadamente seu mal.
O ódio ao próximo é um pecado grave quando se lhe deseja deliberadamente um grave dano. “Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos de vosso Pai que esta nos céus…” (Mt 5,44-45)” (§ 2303 CIC).
– Respeitar a dignidade do próximo, portanto, é, antes de tudo, reconhecer no próximo a imagem e semelhança de Deus e, diante disto, não cultivar, em nosso homem interior, qualquer atitude de inimizade, de ódio e de rancor para com o próximo, sabendo que ele é tão digno quanto nós, que todos somos imagem e semelhança de Deus.
Por isso, qualquer ofensa ou insulto feito a alguém já se constitui em descumprimento do sexto mandamento.
Por isso, o Catecismo Maior de Westminster considera como pecado contra este mandamento, na resposta à pergunta 136, “…a ira pecaminosa, o ódio, a inveja, o desejo de vingança (…)as palavras provocadoras; a opressão, a contenda, os espancamentos, os ferimentos e tudo o que tende à destruição da vida de alguém.…” (end.cit.).
– A cólera imotivada contra o próximo já se constitui em descumprimento do sexto mandamento. Quando sem motivo, e o motivo aqui há de ser um justo motivo, um motivo determinado pela própria Palavra de Deus, nós nos enraivecemos contra alguém, já estamos a descumprir o sexto mandamento, pois este ódio pode chegar até à eliminação da vida do outro.
Não foi, aliás, este o fator que motivou o primeiro homicídio da história? Não teve Caim primeiramente ódio de Abel para só depois derramar-lhe o sangue?
– Jesus nos mostra que a simples raiva contra alguém já representa um ultraje à dignidade do ser humano, pois, Deus, sendo o Criador de todos os homens, mesmo sendo eles pecadores, ama-os a ponto de ter dado o Seu Filho Unigênito para que eles pudessem ser salvos (Jo.3:16; I Tm.2:4), como uma reles criatura, como nós, se acha no direito de querer mal a alguém, que achar que alguém deva ser anulado, desprezado e, no limite, eliminado da existência terrena?
– O discípulo de Jesus ama a todos os homens, porque é como o seu Mestre, Que amou a todos a ponto de ter dado Sua vida por todos os seres humanos (Jo.15:13), que tem como único intento salvar a humanidade (Jo.3:17).
Ser cristão é ser “um pequeno Cristo”, ser “parecido com Cristo” e, deste modo, em momento algum pode querer, sem motivo, que alguém seja cerceado, anulado ou, no limite, eliminado da face da Terra.
– O apóstolo João bem compreendeu este ensino de Cristo e foi claro ao dizer que quem aborrece o seu irmão é homicida (I Jo.3:15a) e isto vemos, como já dissemos supra, clarissimamente na vida de Caim. Caim primeiro aborreceu seu irmão e, por tê-lo aborrecido, acabou por derramar-lhe o sangue.
– O “apóstolo do amor” ainda afirma que quem é homicida não tem permanente nele a vida eterna (I Jo.3:15b), ou seja, é alguém que não tem comunhão com o Senhor, e, por isso mesmo, ficará do lado de fora da cidade santa (Ap.21:7), até porque tem um caráter que o identifica com o diabo, que é homicida desde o princípio (Jo.8:44).
– E por que o diabo é homicida desde o princípio? Porque ele sempre aborreceu o ser humano, odiou-o desde o instante mesmo de sua criação, visto que pôde observar que se tratava de um ser que fora criado para ter comunhão com Deus, comunhão que ele havia perdido.
Este ódio aumentou ainda mais quando soube ele que o homem, tendo pecado, ao contrário dele, teria a chance do perdão.
– Por isso, o título de nossa lição fala de “se resguardar dos sentimentos ruins”, porque são estes sentimentos de menosprezo, desprezo e vilipêndio da figura do ser humano que levam, no limite, ao derramamento de sangue, mas o pecado já se encontra no exato instante em que se tem tal sentimento, em que se dá guarida a um aborrecimento do próximo.
– Não é por acaso que o Senhor Jesus vai dizer que é do coração que procedem todos os pecados (Mt.15:10-20) e que é do interior do homem que vem a contaminação.
Quando fazemos prevalecer o nosso “eu” e, como se fôssemos Deus, decidimos quem merece e quem não merece a nossa consideração, esquecendo que Deus fez a todo ser humano como Sua imagem e semelhança, estamos iniciando um caminho perigosíssimo, que nos faz “réu do sinédrio”.
– Na verdade, quem assim desconsidera o seu semelhante, como diz as Escrituras, já é um homicida e o fato de ter, ou não, derramado o sangue do outro é mero pormenor, mero aproveitamento de uma oportunidade.
Caim já era homicida quando passou a odiar Abel e derramou o sangue inocente quando teve oportunidade, quando estava a sós com ele no campo, mas já fora, inclusive, repreendido antes disso pelo Senhor.
– O homicida derrama o sangue quando tem oportunidade e a aproveita, mas já é homicida desde o momento em que desconsidera o semelhante, em que se assume uma posição que não tem, a posição de juiz e de legislador, que é privativa e exclusiva do Senhor Criador (Tg.4:11,12).
– A condição espiritual do homicida é terrível. O Senhor Jesus mostra isto claramente, ao mostrar que é “réu do Sinédrio” não só aquele que derrama sangue, mas também o que se encoleriza sem motivo contra seu irmão, aquele que aborrece o seu irmão.
– O Sinédrio era o “Superior Tribunal Federal” dos judeus, a máxima autoridade judiciária de Israel e não só judiciária porque, nos dias de Jesus, o Sinédrio era a máxima autoridade judaica em todos os quadrantes, já que Israel se encontrava sob domínio romano.
– Por isso, somente o Sinédrio podia condenar alguém à morte e, mesmo assim, isto era raríssimo, não só diante da jurisprudência que foi criada ao longo dos séculos, dificultando ao máximo a aplicação da pena capital entre os israelitas, como também pela própria dominação estrangeira sobre o povo judeu.
– Bem, por isso, os integrantes do Sinédrio, que era composto por 70 pessoas, sob a presidência do sumo sacerdote, foram pedir a Pilatos que condenasse Jesus à morte, já que consideravam não ser “lícito” fazê-lo (Jo.18:31), embora já tivessem decidido que Cristo era réu de morte (Mt.26:66), algo que só o Sinédrio poderia fazer.
– Ao dizer, portanto, que o homicida, assim entendido quem odeia seu semelhante, é “réu de Sinédrio”, o Senhor Jesus assinala que ao homicida está destinada a condenação de morte, condenação que não é a morte física, mas algo muito pior, a morte eterna, já que conclui dizendo que tal pessoa é “ré do fogo do inferno” ou, na NAA, “sujeito ao inferno de fogo”.
– Vemos, pois, que o Senhor Jesus é claríssimo: quem escolher o caminho do ódio ao semelhante, torna-se homicida e fará companhia eterna ao homicida desde o princípio, o diabo, a quem está reservado o lago de fogo e enxofre (Mt.25:41).
III – O ENSINO DE JESUS SOBRE A RECONCILIAÇÃO
– Em continuidade à explanação do verdadeiro sentido do sexto mandamento, o Senhor Jesus fala da necessidade absoluta do exercício do perdão e da reconciliação, para que se estabeleça a paz entre os homens e, por conseguinte, se tenha o devido cumprimento do sexto mandamento.
– Uma das características dos tempos finais da dispensação da graça, os chamados “tempos trabalhosos”, é o surgimento de homens “irreconciliáveis” (II Tm.3:3).
Hoje em dia, é notória a indisposição das pessoas para se conciliarem, para pedirem e darem perdão, para ter uma convivência pacífica e harmoniosa com o próximo, inclusive entre os que cristãos se dizem ser.
– Entretanto, este comportamento não é o requerido pelo Senhor Jesus. Muito pelo contrário, devemos atentar para o que diz Nosso Salvador no sermão do monte, exigindo de cada um de Seus discípulos que, antes de adorar a Deus, entre em conciliação com o próximo, a fim de que sua oferta seja aceita pelo Senhor (Mt.5:25,26).
O discípulo de Cristo Jesus que não perdoa, que não usa de misericórdia, sofrerá as consequências de suas próprias mazelas, de seus próprios erros.
– Após afirmar que o homicida é “réu do fogo do inferno”, “réu do Sinédrio”, assim considerado não apenas quem derrama o sangue do semelhante, mas quem odeia o próximo, Cristo traz uma consequência prática deste ensinamento aos Seus discípulos.
– Se odiar o semelhante leva à morte eterna, é uma circunstância de total separação de Deus, como pode alguém querer adorar ao Senhor tendo desentendimentos, contendas e situações mal resolvidas com o seu semelhante?
– Jesus mostra-nos que não é possível termos comunhão com Deus se não tivermos comunhão com o próximo.
É impossível amar a Deus e odiar o semelhante, como nos dirá clara e abertamente o “apóstolo do amor”: “Se alguém diz: Eu amo a Deus e aborrece a seu irmão, é mentiroso.
Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? E d’Ele temos este mandamento: que quem ama a Deus, ame também seu irmão” (I Jo.4:20,21).
– Há aqui o perfeito entrelaçamento dos dois grandes mandamentos da lei de Moisés, o amor a Deus e o amor ao próximo (Mt.22:37-39), mostrando que uma consequência inevitável do restabelecimento da amizade entre Deus e o homem por intermédio de Jesus Cristo é que o discípulo de Cristo passa, também, a amar o próximo, a amar o irmão.
– O discípulo de Cristo, desta forma, segue o exemplo do seu Mestre, que veio ao mundo, deixando a Sua glória, por amor a Deus e amor a todos os homens.
Por isso mesmo, o Senhor Jesus dirá, em Suas últimas instruções aos discípulos, que o Seu mandamento é que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou (Jo.15:12), pois Ele é o exemplo que devemos seguir para que consigamos ter este comportamento que de nós é exigido.
– O discípulo de Jesus é alguém que se apresenta diante de Deus, que cultua a Deus, que adora ao Senhor. Por isso, o Senhor diz, com muita naturalidade: “Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar” (Mt.5:23).
– Evidentemente que Jesus usava uma linguagem relativa ao culto cerimonial da lei, até porque havia nascido sob a lei (Gl.4:4), mas Sua expressão está a se referir ao fato de que é próprio do discípulo de Cristo cultuar a Deus.
E este culto não é apenas individual, até porque a adoração em espírito e em verdade que nos é requerida independe do local (Jo.4:21-24), mas é também uma adoração coletiva, feita em locais designados para isto.
– O discípulo de Cristo “traz a sua oferta ao altar”, ou seja, tem um local coletivo em que adora a Deus, presta-Lhe culto e realiza a Sua obra, a sua igreja local. Vemos, deste modo, quão distante da condição de discípulo de Jesus estão os “desigrejados”…
– No entanto, somente podemos trazer a oferta diante do altar se estivermos em comunhão com Deus. Aqui Jesus já nos mostra a diferença que haveria entre o Seu discípulo e os adoradores do tempo da lei.
Ninguém podia se chegar a Deus, no tempo da lei, em comunhão com Ele, porquanto havia uma separação permanente entre o Senhor e os homens, simbolizada pelo véu que separava o lugar santíssimo do lugar santo.
– Entretanto, desde quando Jesus morreu na cruz do Calvário, este véu se rasgou de alto a baixo (Mt.27:51; Mc.15:38; Lc.23:45), tendo nós, por Cristo, pleno acesso ao lugar santíssimo (Hb.10:19,20).
Por isso, quando traz oferta ao altar, já está em comunhão com Deus, pois sua oferta é pacífica, não é mais pelo pecado, pois este sacrifício já foi realizado uma vez por Cristo, sendo perfeito (Hb.10:10-12).
– O sacrifício de Jesus promoveu a reconciliação entre Deus e os homens. Na cruz, como diz o apóstolo Paulo, Deus estava em Cristo reconciliando conSigo o mundo, não lhes imputando os pecados e pondo em nós a palavra da reconciliação (II Co.5:19).
– Há três palavras gregas que são traduzidas por “reconciliação” na Versão Almeida Revista e Corrigida (ARC).
A primeira, utilizada no texto mencionado de Paulo, é “katalasso” (καταλάσσω), que é composta de “alasso”, que significa “mudar” e “kata”, partícula que tem o significado de “para baixo”, ou seja, algo que vem “de cima”.
“…No texto grego do Novo Testamento mudar com relação a, i.e., uma pessoa em relação a outra; reconciliar-se com alguém…” (Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Dicionário do Novo Testamento, verbete 2644, p.2257).
– Aqui vemos que “…O Divino Filho de Deus Se fez homem para que, entrando em Sua criação, pudesse trazer a criação de volta ao Pai.
Em Jesus Cristo, Ele reconciliou o mundo com Deus por meio de sua obra na cruz.…” (Katalasso. Disponível em: https://ltogether.org/word-study/katalasso Acesso em 24 fev. 2022 tradução via Google de texto em inglês). Deus, por meio de Cristo, vem e reconcilia o mundo consigo, concede esta benesse para o homem.
– Mas, uma vez reconciliado com Deus, a pessoa tem de, também, segundo o ensino do Senhor Jesus, reconciliar-se com o seu próximo e aqui a palavra empregada por Cristo é outra, a saber, “dialasso” (διαλάσσω), empregada só esta vez em todo o Novo Testamento.
Aqui, embora tenhamos o mesmo verbo “alasso”, cujo significado é mudar, temos uma outra partícula, “dia”, cujo significado é de transição, de mutualidade.
“…Mudar os nossos próprios sentimentos em relação a algo, reconciliar-se, tornar-se reconciliado…” (Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Dicionário do Novo Testamento, verbete 1259, p.2143).
Quando utilizamos “dialasso”, estamos dizendo “…reconciliar quando a falha pode ser devida às duas partes interessados…” (Bíblia de Estudo Palavras-Chave. Dicionário do Novo Testamento, verbete 2644, p.2257).
– Assim, se Deus, absolutamente perfeito, vem, por amor, reconciliar-se com o mundo, por meio de Cristo, que paga a culpa dos homens pecadores, o Senhor Jesus está a falar aqui de “reconciliação entre imperfeitos”, entre pessoas que têm falhas mas que precisam viver em paz, viver em comunhão, cessar as suas intrigas e diferenças, reconhecendo cada uma das suas próprias culpas, algo que o irmão do Senhor, Tiago, denominaria de “confessar as culpas uns aos outros” (Tg.5:16).
– Costuma-se discutir esta passagem do sermão do monte a respeito de quem deve tomar a iniciativa da reconciliação: o que está certo ou o que está errado, por que Jesus afirma: “se te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti”.
Aí, alguns dizem que quem deve tomar a iniciativa é o “inocente”, porque errado seria aquele que tem algo contra ti, enquanto outros dizem o contrário, pois se alguém tem algo contra ti é porque foi a pessoa que o ofendeu.
– Todavia, tal discussão não tem cabimento quando vemos que o sentido da palavra “reconciliação” aqui pressupõe um “diálogo”, pressupõe pessoas igualmente falhas, pois raramente numa intriga, numa desavença, teremos um “mocinho” e um “vilão”. Somos todos imperfeitos e necessitamos, para alcançar a perfeição que
é exigida pelo Senhor Jesus de Seus discípulos (Mt.5:20,48), obter a reconciliação com o nosso próximo, com o nosso irmão.
– Aqui exsurge, também, a discussão de quem seria este “irmão”. Trata-se de qualquer pessoa, o próximo, ou apenas daquele que é também discípulo de Jesus? A dificuldade aumenta porque a palavra grega “adelphos” (αδελφός) é utilizada em ambos os significados no texto bíblico.
– As Escrituras dizem que, enquanto depender de nós, devemos ter paz com todos os homens (Rm.12:18), mas também afirma que não é possível ter comunhão entre a luz e as trevas e que não podemos nos prender com jugo desigual (II Co.6:14).
O texto em comento fala da necessidade de termos comunhão com o irmão antes de querermos expressar nossa comunhão com Deus no culto.
– Sendo assim, uma interpretação do texto é que o irmão é, em primeiro lugar, o outro discípulo de Cristo, com quem não podemos, em absoluto, ter quebra de comunhão. Somos todos membros em particular do corpo de Cristo (I Co.12:27) e o corpo de Cristo não sofre de autoimunidade.
No entanto, não se pode excluir a hipótese de procurarmos nos acertar, por nossos erros, com quem não professa a nossa fé em Jesus, porque, embora não tenhamos comunhão com eles, não podemos ter intrigas em razão de nossas imperfeições e sempre devemos fazer o bem a todos, sob pena de estarmos cometendo pecado (Tg.4:17).
– O culto a Deus, mostra-nos o Senhor Jesus, tem uma dimensão coletiva. Não se pode estar em comunhão com Deus se não se estiver em comunhão com os irmãos, os demais discípulos, devendo o servo de Jesus também tomar todas as iniciativas para fazer cessar as diferenças decorrentes de suas imperfeições com os demais homens.
– Esta busca da reconciliação não deixa de ser mais uma demonstração do mesmo amor que Deus revelou em relação aos homens, a ponto de, em Cristo, reconciliar consigo o mundo.
Ora, se um Deus perfeito e santo teve tal gesto de boa vontade para com os miseráveis pecadores que eram os homens, como pode alguém que se diga discípulo de Jesus e que foi alcançado por este amor negar a reconciliação com outro igualmente salvo e mesmo com os perdidos, por quem também Jesus morreu (II Co.5:14,15).
– O discípulo de Jesus não pode, portanto, guardar mágoas nem ressentimentos, nem tampouco permitir que haja mágoas e ressentimentos nos corações dos outros por causa de suas atitudes. Esta raiz de amargura pode nos privar da graça de Deus, trazendo danos a muitas pessoas (Hb.12:15).
– Estes sentimentos ruins, portanto, não só produzem males entre os homens mas também entre os homens e Deus. Não há como estabelecermos comunhão com o Senhor se não estivermos em comunhão com os irmãos e sem intrigas e atritos, no que depender de nós, com os demais seres humanos.
– Não há como termos nosso culto aceito diante de Deus com mágoas, ressentimentos e diferenças com outros discípulos de Cristo nem que tenham esgotado os meios de dissiparmos diferenças com pessoas que não pertençam à igreja do Senhor Jesus.
Não é por outro motivo que, ao nos lembrarmos da morte vicária de Cristo e anunciarmos a Sua vinda, na ceia do Senhor, primeiro participamos do pão (Mt.26:26; Mc.14:22; Lc.22:19; I Co.11:24), lembrando que estamos em comunhão com os irmãos, para só, então, participarmos do vinho, para dizermos que estamos em comunhão com Deus (Mt.26:27; Mc.14:23; Lc.22:20; I Co.11:25).
– Observemos que o Senhor Jesus diz que esta reconciliação deve ser feita depressa, ou seja, sem demora, em breve, até porque, como nos ensinará Cristo neste mesmo sermão, devemos viver o dia de hoje, não nos preocuparmos com o amanhã (Mt.6:34). “Hoje” é o dia de servirmos a Deus (Hb.4:7).
– Deste modo, devemos acertar as diferenças com os irmãos e com os demais o quanto antes, assim que tivermos consciência da existência de qualquer coisa de alguém contra nós, é nosso dever tentar superar isto, o quanto antes, e de modo rápido, pois o Senhor diz que devemos deixar a oferta no altar, obter a reconciliação e depois tornar a fazer a oferta, o que somente seria possível, dentro do culto levítico, se isto ocorresse no mesmo dia, durante o “expediente do templo”.
– A rapidez mostra que não podemos querer “fazer valer nossas razões”, “nossos motivos”, pois, na verdade, o objetivo é obter a reconciliação, não criar imposições ou satisfações próprias.
– O Senhor Jesus, ademais, lembra que quem quiser fazer prevalecer os seus “direitos”, as suas “razões”, vai acabar sentindo o peso da justiça.
Como somos servos de Cristo, não há como escaparmos de sermos devidamente disciplinados quando estivermos errados.
O Senhor Se utilizará do sistema judiciário precário, injusto e falho deste mundo para que a justiça se faça em Seus servos, a fim de que Seu nome não seja escandalizado. Não duvide disto, amado irmão! Se o amado se achar sobremaneira justo, Deus mostrará, no aparato judiciário terreno, todas as nossas falhas e imperfeições!
– Sejamos, pois, prontos a nos reconciliar com os outros, para que não sejamos nós mesmos alvos da justiça divina, por meio da justiça humana, pois temos de ter consciência de que somos salvos pela graça de Deus e que bom é só o Senhor (Mt.19:17; Mc.10:18 e Lc.18:19), de modo que jamais devemos nos esquecer que somos imperfeitos e que dependemos única e inteiramente de Jesus para chegarmos até o final sem fracassarmos espiritualmente.
Pr. Caramuru Afonso Francisco
Fonte: https://www.portalebd.org.br/classes/adultos/7376-licao-4-resguardando-se-de-sentimentos-ruins-i