APÊNDICE Nº 1 – O DECRETO DIVINO: A CHAMADA DIVINA E O LIVRE-ARBÍTRIO
Texto áureo:
“E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou” (Rm.8:30).
A questão do livre-arbítrio é um dos temas mais polêmicos que tem surgido na história da igreja, mas que foi enfrentado pelo apóstolo Paulo na epístola aos romanos.
INTRODUÇÃO
– Ao concluir o tema da justificação pela fé em Cristo Jesus, o apóstolo Paulo, de imediato, passa a discutir um dos pontos mais polêmicos da doutrina cristã: a questão da liberdade do homem e da soberania do Senhor ante o plano divino para a salvação, que apresentaremos em apêndice ao trimestre.
– É sabido que este tema é um dos que mais dividem os estudiosos das Escrituras Sagradas, de modo que, sem querermos ter o condão de encerrar uma discussão milenar, devemos humildemente apresentar as versões existentes e demonstrar aquela que é acolhida pela nossa denominação, lembrando, a propósito, o posicionamento de Martinho Lutero, um dos principais defensores de uma das correntes de pensamento, de que se trata de um ponto secundário da doutrina, tanto que só foi tratado pelo apóstolo Paulo a partir do final do capítulo 8 da epístola, quando já se havia falado a respeito do valor da salvação do homem por Cristo Jesus.
I – A SOBERANIA DIVINA
– Antes de adentrarmos à discussão do tema deste apêndice ao trimestre, não podemos deixar de verificar o contexto em que ele surge na epístola aos romanos, pois isto é fundamental até para a compreensão do ensino de Paulo a respeito, em passagem que já se disse ser uma das mais difíceis das Escrituras Sagradas.
– Paulo está a falar sobre a circunstância de, como filhos de Deus por adoção, sermos guiados pelo Espírito Santo e de, por causa desta nova condição, sermos herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo e como finalidade a glorificação (Rm.8:17-21).
– Ora, o apóstolo mostra-nos, assim, claramente, que a salvação é um processo, ou seja, não é um fato pontual, uma ocorrência precisa num determinado instante, mas que, começando pelo arrependimento dos pecados, deve caminhar até a glorificação, glorificação esta, aliás, que é desejada inclusive pelo restante da criação divina (Rm.8:22).
Há um propósito, há uma finalidade, há um objetivo na salvação — a redenção do nosso corpo, que é propriamente a adoção (Rm.8:23).
– Vemos, pois, que a salvação é, para Paulo, não só uma mudança presente da realidade, mas também uma esperança (Rm.8:24,25) e, nesta esperança, recebemos a necessária e indispensável ajuda do próprio Deus, através da Pessoa do Espírito Santo, visto que, nesta caminhada, não nos tornamos infalíveis, mas mantemos as nossas fraquezas, pois, como já estudamos em lições anteriores, enquanto não vier a glorificação, embora salvos, ainda não nos livramos do corpo do pecado, da “velha natureza”, que conviverá conosco até que saiamos desta vida (Rm.8:26,27).
– O apóstolo, portanto, faz questão de mostrar que o fato de sermos filhos de Deus, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo, traz-nos a esperança de alcançarmos a glorificação, mas esta glorificação é, ainda, uma esperança, algo que não se realizou ainda e que, inclusive, pode não se realizar, a menos que nos mantenhamos debaixo da intercessão e da ajuda divinas.
– Este início do tratamento da questão é de fundamental importância para a compreensão de todo o argumento que é trazido pelo apóstolo Paulo a partir de então.
Como bom estudioso das Escrituras, o apóstolo sabe, muito bem, que Deus é único e é o Senhor de todas as coisas. O primeiro e mais caro artigo de fé de um judeu é a crença em um único Deus e da circunstância de que Ele é o Criador de todas as coisas e que, portanto, todas as coisas Lhe pertencem.
– Como Deus é o Criador de tudo e, por isso, o Senhor de todas as coisas (Sl.24:1), tem-se que Ele é o único que pode ajudar o homem, nas suas fraquezas, a alcançar a glorificação, o estágio final da salvação. Por ser soberano, Deus é onipotente.
Mas, por ser o Supremo Ser, Deus também conhece todas as coisas, por isso Ele e só Ele sabe qual é a intenção do Espírito Santo e examina os corações (Rm.8:27).
Por ser, também, o Ser Maior, Deus está presente em todos os lugares, é onipresente e, por isso, pode, ao mesmo tempo, interceder por todos os santos (Rm.8:27).
– A soberania divina é, portanto, resultado da própria natureza de Deus. Como Deus é o Criador de todas as coisas, Ele está acima de todos os seres, de toda a criação, não Se confundindo com ela.
Deus é soberano porque está acima e além de todas as criaturas e o apóstolo, nesta passagem, fez questão de mostrar que havia uma distinção entre o Senhor e as demais criaturas, tanto que Deus é quem ajuda nas fraquezas do homem e intercede pelos santos, bem como a criação geme aguardando a glorificação dos filhos de Deus, expressões bíblicas que mostram, claramente, que há uma profunda distinção entre Deus e a criação.
– Esta alusão à soberania divina é importantíssima, pois jamais podemos nos esquecer que Deus, embora faça questão de estar ao nosso lado, de ser nosso companheiro na jornada, não Se confunde com qualquer dos homens, não deixa de ser um ser que está e sempre estará além de nós, pois, mesmo quando alcançarmos a glorificação, a Bíblia é clara ao dizer que, na Jerusalém celestial, haverá Deus e o Seu povo, vivendo em comunhão, mas como seres distintos, que jamais se confundirão (Ap.21:3).
– A partir desta premissa, fica mais fácil entender o sentido da expressão do apóstolo em Rm.8:28-30, a saber: “ e sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por Seu decreto.
Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou.”
– O apóstolo aqui está vendo as coisas a partir de Deus, que, como vimos, está além das criaturas. Como Deus é soberano, tem o domínio sobre todas as coisas, sabe e pode fazer com que tudo o que aconteça seja para o bem dos homens. Mas que homens? Os homens que foram chamados por Seu decreto.
– Mas o que é o decreto de Deus? Ora, sabemos que decreto é “ordem ou resolução emanada de autoridade superior ou instituição, civil ou militar, leiga ou eclesiástica”, ou seja, uma determinação proveniente de uma autoridade.
Quando o apóstolo fala em “decreto”, está, uma vez mais, lembrando que Deus é soberano, é a autoridade máxima do universo, o verdadeiro detentor do poder. Em latim, a palavra “decretum” é aquilo que foi julgado, decidido, determinado.
Verdade é que a palavra do texto original grego traduzida na Versão Almeida Revista e Corrigida por “decreto” é “prothesis” (προθεσις), que outras versões têm traduzido por “propósito” (inclusive a Versão Almeida Revista e Atualizada), mas que também significa “plano”, “resolução” e “vontade”, o que não retira, portanto, a ideia de autoridade existente no vocábulo.
– Por ser soberano, Deus resolveu, decidiu criar todas as coisas e, por isso, o mundo foi criado, pois, em Deus, o simples desejo já é efetuar (Fp.2:13).
Por ser soberano, Deus quis criar os homens com o livre-arbítrio, ou seja, com liberdade para escolher entre o bem e o mal, algo que explicitaremos infra. Por ser soberano, Deus sabe o que é o bem e, por isso, como nenhum outro ser, tem condições de permitir, na vida dos homens, ocasiões e circunstâncias que, aparentemente más, contribuem para o bem dos indivíduos. Por ser soberano, Deus pode chamar os homens ao arrependimento, mesmo depois de eles terem pecado, dando uma oportunidade de salvação ao pecador.
Por ser soberano, Deus sabe, de antemão, quem atenderá ao Seu chamado e quem não o fará. Por ser soberano, Deus pode conceder a vida eterna apenas aos que atenderem ao Seu chamado.
– Vemos, pois, que o fato de Deus ser soberano tem, logicamente, implicações no plano estabelecido para a salvação do homem. Este plano só existe porque Deus é soberano e quis criar uma forma de o homem se livrar do pecado.
Como Deus é soberano, a forma por Ele estabelecida é a única maneira de o homem alcançar a salvação.
– Entretanto, a soberania divina não interfere na liberdade do homem, porque a soberania diz respeito a Deus, que está além de toda a criação, é algo imputável somente a Ele, faz parte da Sua própria natureza e, por isso, não podemos querer transferir a soberania divina para algo que diz respeito apenas ao homem.
A soberania divina tem a ver, portanto, com a própria existência de um plano de salvação, com o fato de Deus conhecer, de antemão, todas as coisas, a chamada “presciência de Deus” e, por isso, saber que fatos aparentemente maus, contribuem sempre para o bem daqueles que amam a Deus, bem como que Deus sabe quem será salvo e quem não o será, mas nada disto tem a ver com a salvação de cada um.
II – A LIBERDADE DO HOMEM
– Tendo visto, ainda que superficialmente, o significado da soberania divina, passemos, agora, a outro ponto que tem sido um dos fatores do verdadeiro “pomo da discórdia” que se desenvolve sobre esta matéria da doutrina cristã, a saber, a liberdade do homem.
– Assim como a Bíblia é clara ao apontar que Deus é soberano e Senhor de todas as coisas, também é explícita ao mostrar que o homem foi criado com livre-arbítrio, ou seja, com liberdade de escolha, clareza tal que nenhum dos polemistas a respeito da salvação do homem, ao longo da história da humanidade, ousou discordar desta verdade bíblica, que é assumida por todas as correntes de pensamento, qual seja, a de que Deus criou o homem com livre-arbítrio, com liberdade de escolher entre o bem e o mal.
– Com efeito, ao verificarmos o texto sagrado, vemos em Gn.2:16,17, que Deus deu uma ordem ao homem no sentido de que ele comesse livremente de todas as árvores do jardim do Éden, com exceção da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que ele dela comesse, certamente morreria. Desta ordem divina,
tiramos várias e importantíssimas conclusões, fundamentais para a compreensão da liberdade humana e de toda a celeuma em torno do processo da salvação.
– Em primeiro lugar, vemos que tudo começa com uma ordem divina ao homem:
“E ordenou o Senhor Deus ao homem”(Gn.2:16a). Ora, vemos aqui, claramente, que Deus é, uma vez mais, reconhecido como o detentor do poder, como a fonte de toda a autoridade, como o Soberano.
Deus deu uma ordem ao homem, ou seja, o homem se encontrava numa posição de submissão a Deus, deveria comportar-se como servo, é verdade, o principal servo, o “mordomo”, mas, indubitavelmente, como um ser inferior, como um ser sujeito ao seu Senhor e Criador.
– Esta circunstância faz com que a liberdade do homem seja, de pronto, reconhecida como algo que se encontra sob o senhorio de Deus, sob a autoridade divina.
O livre-arbítrio, pois, será construído debaixo da soberania divina, jamais poderá ser entendida como uma faculdade do homem de se pôr ao lado ou acima de Deus.
Tanto assim é que o próprio adversário, ao tentar Eva, fez questão de propor ao primeiro casal a ilusória possibilidade de saírem de debaixo da sujeição a Deus, numa prova contundente de que a soberania divina não foi em momento algum afetada pela concessão de liberdade ao homem (cf. Gn.3:4,5).
– A liberdade do homem, portanto, construiu-se debaixo da soberania divina, não havendo, pois, qualquer incompatibilidade, qualquer conflito entre o fato de Deus ser soberano e o homem, livre para escolher entre o bem e o mal.
Esta dificuldade surge somente quando se identifica, equivocadamente, a liberdade com a “autonomia”, ou seja, quando se pensa que ao homem foi dado o direito de escolher as regras e as normas segundo as quais poderia viver.
“Autonomia” é “…segundo Kant (1724-1804) [filósofo alemão, observação nossa], capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível…”(Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) e, desde este filósofo, tem sido confundida com a ideia de liberdade.
Todavia, as Sagradas Escrituras ensinam que a liberdade dada ao homem por Deus foi uma liberdade que Kant denominou de “heteronomia”, ou seja, “…sujeição da vontade humana a impulsos passionais, inclinações afetivas ou quaisquer outras determinações que não pertençam ao âmbito da legislação estabelecida pela consciência moral de maneira livre e autônoma…”(ibid.), ou seja, uma liberdade sujeita à vontade e às determinações de Deus.
– Em segundo lugar, o texto bíblico mostra que Deus fez o homem com liberdade para escolher entre o bem e o mal.
É dito que o homem poderia comer livremente de todas as árvores do jardim e, se vermos bem o contexto, esta liberdade abrangia, inclusive, a possibilidade de comer da árvore proibida, pois, se assim não fosse, como Deus teria dito que o homem morreria no dia em que comesse da árvore da ciência do bem e do mal? Só o disse porque havia esta possibilidade.
É esta liberdade de escolha, entre obedecer ou desobedecer à ordem divina, em que consiste o livre-arbítrio. Deus, em Sua soberania, quis criar o homem com a faculdade de escolher servir a Deus, ou não.
– A liberdade humana, o livre-arbítrio, portanto, é uma manifestação da vontade divina. Deus quis que o homem tivesse esta liberdade e, por isso, não cabe a nós querer estabelecer limites ou objeções ao Senhor por causa desta liberdade.
Deus fez o homem com poder de servi-l’O ou não e, por isso, nós, simples seres humanos, não podemos querer obrigar os homens a servir a Deus. Quem cerceia, pois, a liberdade de opção do homem em servir, ou não, a Deus, algo que, infelizmente, muitas vezes foi praticado em nome do Senhor, atenta, antes de mais nada, contra a própria ordem estabelecida por Deus, que foi quem criou o homem com esta faculdade.
– O fato de Deus ter criado o homem com esta liberdade, faz com que o homem tenha o livre-arbítrio na sua própria natureza. Assim como Deus é soberano por natureza e, por isso, não pode deixar de sê-l’O, também o homem é livre por natureza e não deixará de sê-lo, mesmo quando incorrer em pecado.
Segundo a própria declaração divina, quando o homem comesse da árvore proibida, não deixaria de ter o livre-arbítrio, mas, sim, certamente morreria, ou seja, a consequência pela desobediência seria a separação entre Deus e o homem, mas não a perda do seu livre-arbítrio, algo que faz parte da sua própria natureza, da sua própria essência.
– Em terceiro lugar, o texto bíblico mostra que a liberdade tem uma correspondência, qual seja, a responsabilidade.
O homem poderia escolher entre o bem e o mal, mas, no dia em que desobedecesse a Deus, em que escolhesse o mal, adviria uma penalidade, qual seja, a morte, a separação entre o homem e Deus (“certamente morrereis”).
A contrapartida do poder dado ao homem para escolher entre o bem e o mal era a de que deveria responder diante de Deus pela escolha feita, arcando com as consequências de sua opção.
– Esta ideia de responsabilidade mostra, claramente, duas coisas, a saber:
- a) não existe liberdade sem responsabilidade, ou seja, o homem não faz o que quer sem qualquer consequência, uma vez que a sua liberdade não é o direito de ditar as regras para si, mas de optar entre seguir, ou não, as regras estabelecidas por Deus.
Liberdade não se confunde, pois, com libertinagem, como, infelizmente, tem sido propagandeado pelo mundo ao longo dos séculos e, muito intensamente, nos dias em que vivemos.
- b) a liberdade humana não altera a soberania divina. O uso da liberdade pelo homem deverá ser objeto de prestação de contas diante de Deus, que é o soberano, a máxima autoridade. O plano da salvação, pois, não elide nem sequer diminui a soberania divina.
– Deus fez o homem com o poder de escolher entre o bem e o mal, sendo real a possibilidade da escolha do mal, só que, uma vez feita a escolha pelo mal, o homem sofrerá a penalidade da morte, ou seja, da separação de Deus, arcando com as consequências de sua opção. Ao criar o homem com liberdade, Deus também estabeleceu que o homem responderia diante d’Ele sobre o uso desta liberdade.
III – A CHAMADA DIVINA PARA A SALVAÇÃO
– Como sabemos da narrativa bíblica, o primeiro casal optou por desobedecer a Deus e, por causa disto, pecou. Naquele mesmo fatídico dia, o Senhor aplicou as normas que havia estabelecido e chamou o casal primordial à responsabilidade, tendo, então, determinado a separação entre Deus e a humanidade, mediante a expulsão do jardim do Éden, a incidência da morte física e da penosidade do trabalho, tornado, então, necessário à sobrevivência da humanidade, bem como a desigualdade fundada no gênero (Gn.3:8-19).
– No entanto, ali mesmo, enquanto responsabilizava o primeiro casal pelo pecado cometido, o Senhor, usando da Sua soberana vontade, revelou que, por amor, haveria de proporcionar um meio para que se restabelecesse a comunhão perdida por causa do pecado.
Deus não era obrigado a isto, porquanto havia já dado a oportunidade para que o homem usasse corretamente da sua liberdade, mas, revelando Seu amor e Sua misericórdia, resolveu abrir uma oportunidade de restauração ao homem, prometendo que, da semente da mulher, viria alguém que tornaria a estabelecer uma comunhão, uma comunidade de vida entre Deus e os homens.
– É importante observar que Deus não “criou” o plano da salvação como um “plano B”, como uma resposta a um “acidente de percurso”, pois, presciente como é, o Senhor já sabia que o homem que criaria Lhe desobedeceria e, portanto, a notícia da salvação dada ao primeiro casal foi tão somente a revelação de algo que já havia planejado antes da fundação do mundo (Ef.1:4; I Pe.1:20; Ap.13:8), ou seja, o pecado cometido pelo primeiro casal não significou qualquer abalo à soberania divina, que, desde antes mesmo de criar o homem, já havia previsto um meio de salvação para este homem e, como diz o teólogo holandês Jacó Armínio (1560-1609), Deus não só previu a criação, como também a queda do homem e resolveu salvar este homem pecador, prevendo, pois, um meio de salvação aos pecadores.
– Por isso, a salvação do homem é um plano de Deus, ou seja, deve a sua existência à vontade soberana do Senhor e, neste sentido, é algo que jamais poderia acontecer sem que Deus o quisesse.
O homem só pode ser salvo porque Deus quis criar esta chance de salvação. A salvação do homem, portanto, nasceu em Deus e só n’Ele tem razão de ser.
– No entanto, a salvação tem de ser entendida sob o prisma da ordem estabelecida por Deus.
O Senhor fez o homem com poder de escolher entre o bem e o mal e, deste modo, ao determinar que o homem pode ser salvo, esta Sua determinação está em consonância com o Seu propósito inicial, qual seja, o de dar o homem o poder de escolher entre aceitar, ou não, este plano divino.
Ao determinar que haveria uma forma de o homem voltar a ter comunhão com Ele, o Senhor, que não muda nem tem sombra de variação (Tg.1:17 “in fine”), não elidiu a circunstância de que caberia ao homem optar por aceitar esta oferta de salvação, já que criou o homem com livre-arbítrio.
– A chamada divina para a salvação do homem, portanto, deve ser entendida como o convite que Deus faz ao homem para que aceite o Seu plano estabelecido para a restauração da comunhão com o Senhor.
Deus ama o homem e quer que o homem se salve e, por isso, criou um plano, um meio para que o homem voltasse a ter comunhão com o Senhor.
É este gesto divino de amor e de benevolência, que estende a Sua mão ao homem propondo o retorno de uma comunhão que é denominada de “chamada” ou “vocação” divina.
– Mas a quem Deus chama à salvação? A Bíblia responde-nos: “Deus quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (I Tm.2:4).
“Desejaria Eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? Diz o Senhor JEOVÁ: não desejo, antes, que se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez.18:23). “Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens” (Tt.2:11).
A chamada é universal, ou seja, chama a todos os homens para a salvação. Deus oferece uma real oportunidade de salvação a todos os homens, indistintamente.
– É aqui importante registrar que Deus noticia a salvação para o homem, chama-o à salvação, mas este atendimento ao chamado divino somente se dá por causa da graça de Deus. Ora, já estudamos neste trimestre, que a graça é o favor imerecido de Deus.
Deus quis salvar o homem e, por isso, embora o homem não mereça, oferece esta salvação e esta graça precede o próprio livre-arbítrio humano. Deus dá a notícia da salvação, chama o homem à salvação, sabendo que, se não tomar esta iniciativa e não criar condições para que o homem possa aceitar esta oferta, o homem jamais poderia ser salvo.
– O primeiro casal, ao ouvir a voz do Senhor no jardim, escondeu-se. Não tinha condições de se apresentar diante de Deus, mas Deus toma a iniciativa de buscar o homem, dizendo: “Onde estás?” (Gn.3:9).
Esta indagação divina era apenas a oportunidade para que o homem se apresentasse e esta apresentação só foi possível pela graça de Deus, “…a graça de Deus não é nada mais que a disposição benevolente de Deus para com o ser humano, sua misericórdia posta em ação a favor do ser humano, exercendo-se de tal maneira que o ser humano possui agora uma possibilidade de ser salvo …” (Graça preveniente (ou graça preventiva ou graça salvadora). Disponível em: http://3re.metodista.org.br/conteudo.xhtml?c=55 Acesso em 24 fev. 2016).
– Mas, alguém poderá dizer que não são todos os homens que se salvam e o dizem com razão, visto que as Escrituras assim o declaram, quando afirmam que “a fé não é de todos” (II Ts.3:2).
No entanto, isto é apenas reflexo do fato de que o chamado para a salvação está inserido na ordem estabelecida por Deus de que os homens foram criados com livre-arbítrio, ou seja, de que a circunstância de que Deus decidiu, por Sua soberana vontade, dar uma oportunidade de salvação ao homem, não elide o fato de que, antes que o homem tivesse pecado, Deus o tivesse criado com o propósito de lhe permitir obedecer-Lhe ou não, de ser dotado com o livre-arbítrio.
– A chamada para a salvação parte de Deus e, portanto, tem de ser universal, pois o caráter divino é imparcial. Deus não faz acepção de pessoas (Dt.10:17; II Cr.19:7; Jó 34:19; Is.47:3; At.10:34; Ef.6:9; I Pe.1:17). Assim, sendo proveniente de Deus, a chamada é para todos os homens.
OBS: “…”A graça de Deus – diz Wesley – da qual nos vem a salvação, é gratuita em tudo e para todos. É gratuita a todos a quem é concedida. Não depende do poder ou mérito do ser humano, em nenhum grau, nem no todo, nem em parte. Do mesmo modo ela não depende das boas obras ou da retidão daquele que recebe, de coisa alguma que tenha feito ou que seja.
Não depende dos seus esforços, dos seus sentimentos, bons desejos, bons propósitos ou intenções, pois todos estes fluem da graça gratuita de Deus; são apenas a corrente, não a fonte.
São os frutos da graça gratuita e não a raiz. Não são a causa mas os efeitos da mesma. Seja o que for de bom que haja no homem ou que seja feito por ele, é Deus o autor e que o faz.
Assim é a sua graça gratuita em tudo, isto é, não depende de nenhum poder ou mérito no homem, mas somente em Deus, que nos deu gratuitamente o seu próprio Filho e “com Ele deu-nos gratuitamente todas as coisas”. (…)Mas terá Deus distribuido a sua graça com todos os seres humanos?
É aqui que Wesley se torna mais enfático. Nem mesmo as doutrinas católico-romanas provocaram-lhe tão grande ira quanto a propagada idéia ao seu tempo de que Deus havia escolhido uns quantos para a salvação, deixando a grande maioria perecer nos seus próprios pecados.
A chamada doutrina da reprovação, a de que Deus não apenas não se importa com milhões, mas deliberadamente os predestinou à perdição, enchia Wesley de horror, que a considerava uma terrível blasfêmia contra Deus, pois o considerava injusto, cruel e mentiroso.
A graça de Deus estava aberta a todos os homens e mulheres. Não apenas aberta a todos mas presente em todos. Wesley acreditava que a Graça Salvadora (ou Preventiva, como ele a chamava) estava em atuação no coração de todos os seres humanos, ao lado de sua consciência, a própria presença de Deus em ação, por sua misericórdia, procurando levar o ser humano ao arrependimento:
“Parece ser esta faculdade a que se referem usualmente aqueles que falam de consciência natural, expressão encontradiça amiúde em alguns dos nossos melhores autores, contudo não estritamente certa, pois, embora possa ser chamada natural, por achar-se em todos os homens, não é, todavia natural, propriamente falando-se, mas um don sobrenatural de Deus, acima de todos os seus dotes naturais”.…” (Graça preveniente. end. cit.).
– Mas Deus já sabe, de antemão, quem aceitará o Seu convite. Portanto, não teria chamado apenas àqueles que Lhe obedecerão?
A resposta é negativa. Não resta dúvida de que Deus, por ser onisciente, sabe quais serão os que Lhe obedecerão, atenderão ao Seu convite, como também aqueles que o rejeitarão.
Mas isto em nada tem que ver com a chamada para a salvação. Deus chama a todos, abre real oportunidade de salvação a toda criatura humana, mesmo sabendo que ela não Lhe obedecerá.
Deus chama a todo o homem, e chama verdadeiramente, pois é a própria verdade (Jr.10:10), porque quer que todos os homens se salvem, embora saiba que nem todos serão salvos.
Sua natureza impõe que Ele chame a todos, mas a natureza que deu ao homem faz com que nem todos os homens atendam ao Seu chamado.
– É o que diz o pregador e teólogo norte-americano Charles Finney (1792-1875), um dos grandes nomes do Segundo Grande Avivamento ocorrido nos Estados Unidos, “in verbis”:
“…Primeiramente Deus se aproxima do pecador e se move a favor deste; mas não é o pecador que se aproxima, ou que se move, ou que procura fazer com que Deus se mova. Deus toma a primeira iniciativa e o pecador é quem se entrega.
Deus chama e o pecador responde. O pecador jamais se aproximaria de Deus, se Deus não o houvesse atraído.
Novamente: Deus chama de modo eficaz, porém não irresistível, antes que o pecador se entregue. (…) ninguém de fato vem a Deus até que tenha sido efetivamente persuadido a fazê-lo; (…) Não há dúvida de que o pecador é totalmente não inclinado a obedecer até o exato momento em que é persuadido e induzido a render-se.
O ato de voltar-se, como temos visto, é um ato de espontânea vontade, porém a pessoa é induzida a voltar-se através da ação do Espírito Santo.
Todo aquele que verdadeiramente já se converteu sabe que a sua conversão não deve ser atribuída a si mesmo, em qualquer outro sentido, a não ser que essa pessoa apenas finalmente consentiu, por ter sido levada e persuadida pelo Espírito Santo.
A glória pertence a Deus pelo fato de o pecador possivelmente ter-se entregado, talvez, após uma longa resistência, e jamais depois que tenha sido tão convencido, de modo que tivesse ainda alguma escusa ou apologia a favor do pecado…” (Teologia sistemática, pp.563-4). O mesmo Finney, citando Fletcher, diz que “a graça antecede o livre-arbítrio” (op.cit., p.563).
– O chamado de Deus é tão real e atinge a todos os homens que, em diversos episódios das Escrituras, contemplamos a realidade deste chamado, ainda quando ele é rejeitado pelo pecador. Senão vejamos.
– Deus, antes que Caim pecasse, advertiu-o de que, caso não fizesse o bem, o pecado o dominaria (Gn.4:7).
Pois bem, mesmo depois de Caim ter pecado, matando seu irmão, Deus, querendo o arrependimento de Caim, concedeu ao homicida uma proteção para que não fosse, também, assassinado, o tão discutido “sinal de Caim” (Gn.4:15), cuja natureza, fruto de toda a discussão, não tem importância frente ao seu significado, que era o de permitir ao pecador uma oportunidade para se arrepender.
No entanto, Caim, assim que recebeu esta dádiva divina, saiu da presença do Senhor e se voltou para as coisas materiais, selando, assim, a sua triste sorte (Gn.4:16,17).
– O mesmo se deu com a geração do dilúvio, porquanto, embora tivesse determinado o Senhor a destruição de toda a carne sobre a terra (Gn.6:7), ainda permitiu que, durante os cem anos de construção da arca, Noé pregasse a justiça divina (cf. II Pe.2:5), num verdadeiro chamado universal à salvação, chamado, porém, que não foi atendido por pessoa alguma daquela geração, que, por isso, acabou totalmente destruída (Gn.7:21) sem se falar que, anteriormente, seu bisavô, Enoque, pregou sobre o castigo aos impenitentes (Jd.14), tendo, inclusive, dado ao seu filho o nome de Matusalém ou Metuselá, cujo significado é “quando ele morrer, isso virá”, um perfeito sinal de que a destruição sobre os ímpios viria, o que, efetivamente ocorreu, pois Metuselá, o homem que mais tempo viveu sobre a face da Terra (a mostrar a longanimidade divina), morreu exatamente no ano do dilúvio.
– O mesmo se deu com relação ao povo de Israel. Todos os israelitas foram chamados à libertação, tanto que todos quantos atenderam ao chamado, fossem israelitas ou pertencessem ao “vulgo” (Nm.11:4), atravessaram o mar Vermelho e deixaram de servir a Faraó, que pereceu nas águas quando o mar fechou, juntamente com seu exército.
Depois, todos eles foram chamados a fazer o pacto com Deus (Ex.19:3,7,8,11), tendo todos se compromissado com o Senhor, mas o fato é que não foram todos os que creram, mas, na verdade, somente Josué e Calebe, dos que tinham vinte anos para cima, perseveraram e, por isso, toda a geração dos vinte anos para cima pereceu no deserto, apesar de terem sido chamados e aceito o chamado, que foi universal (Hb.3:19).
– Percebemos, portanto, que o chamado divino à salvação é universal, abrange a todos os homens indistintamente, visto que é algo que provém da soberania divina e, portanto, tem a ver com o caráter divino, que não admite a acepção de pessoas.
– O apóstolo Paulo menciona esta circunstância ao dizer que “ …todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por Seu decreto” (Rm.8:28).
O apóstolo diz-nos que os que amam a Deus, os que são chamados pelo decreto de Deus têm a seu favor a circunstância de que tudo contribui para o seu bem, daí porque o comentarista da Bíblia de Estudo Pentecostal ter dito que “…este trecho traz grande conforto ao filho de Deus, quando temos que enfrentar sofrimentos nesta vida” (BÍBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL, nota a Rm.8.28, p.1713).
– Mas, alguém poderia objetar, estas palavras do apóstolo não estariam a dizer que só são chamados por Deus os que O amam? A resposta é negativa.
Quando Paulo diz que os que amam a Deus, os que são chamados por Seu decreto, têm a seu favor o fato de que todas as coisas contribuem para o seu bem, está a nos dizer que todos os homens são chamados por Deus, mas que só os que atendem a este chamado e que, por isso, O amam, têm esta grande bênção de usufruir do bem.
É precisamente o que o Senhor havia falado para Caim, para a geração do dilúvio e para a geração adulta do êxodo: “sem bem fizeres, não haverá aceitação para ti?”.
Quando se diz que todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus, que são chamados pelo Seu decreto, não se está a dizer, em absoluto, que só são chamados por Deus os filhos, mas, sim, que, aqueles que amam a Deus e que são chamados pelo decreto divino terão a seu favor a ocorrência de todas as coisas.
– É certo que o homem, por si só, não tem condição de fazer o bem. Esta aceitação do bem, de que o Senhor fala a Caim, depende da graça de Deus, a chamada “graça preveniente, preventiva ou salvadora”, ou seja, o favor divino que permite que o homem tenha conhecimento do que é bom, do que Deus quer.
Esta graça cria as condições para que o homem venha ao conhecimento da verdade, pois, por si só, o homem não teria como chegar a este conhecimento, entender que Deus quer a sua salvação.
– O homem, ao pecar, perdeu a imagem e semelhança de Deus, deixou de ter a justiça original, pois foi feito reto (Ec.7:29), e, por isso, agora tem uma natureza decaída, despida de virtudes morais, justiça, santidade e conhecimento de Deus.
No entanto, a graça de Deus faz com que ele tenha ao menos a noção de que Deus existe e quer salvá-lo. “…A graça de Deus estava aberta a todos os homens e mulheres.
Não apenas aberta a todos mas presente em todos. Wesley acreditava que a Graça Salvadora (ou Preventiva, como ele a chamava) estava em atuação no coração de todos os seres humanos, ao lado de sua consciência, a própria presença de Deus em ação, por sua misericórdia, procurando levar o ser humano ao arrependimento:
“Parece ser esta faculdade a que se referem usualmente aqueles que falam de consciência natural, expressão encontradiça amiúde em alguns dos nossos melhores autores, contudo não estritamente certa, pois, embora possa ser chamada natural, por achar-se em todos os homens, não é, todavia natural, propriamente falando-se, mas um dom sobrenatural de Deus, acima de todos os seus dotes naturais”…” (Graça preveniente. end.cit.).
– Como afirma Finney: “…A depravação moral é a depravação do livre-arbítrio, não da faculdade em si, mas de sua livre ação…” (op.cit., p.270).
Ou seja: o homem não tem condições de descobrir que Deus quer salvá-lo, mas Deus, pela Sua graça, faz com que o homem tenha conhecimento disto, por meio da sua consciência (que é a “voz divina no interior do homem”) e da pregação do Evangelho, criando, assim, condições para que o homem atenda, ou não, ao chamado e isto em relação a todos os homens indistintamente.
– Ademais, quando lemos este texto de Paulo, não devemos nos esquecer do que nos ensina o apóstolo João, ou seja, de que nós amamos a Deus porque Ele nos amou primeiro (I Jo.4:19).
E como podemos saber que Deus nos amou? Precisamente, porque Ele nos chamou para a salvação, chamado que não foi um simples desejo, mas, como em Deus o desejar já é efetuar, chamado que se concretizou mediante a morte de Cristo por nós quando nós ainda éramos pecadores (Rm.5:8).
É este, aliás, o sentido do “texto áureo da Bíblia”: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho Unigênito, para que todo aquele que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo.3:16).
Deus amou o mundo inteiro, sem qualquer exceção, sem qualquer acepção, mas, naturalmente, só conseguirá usufruir das bênçãos deste amor aquele que aceitar a oferta divina de salvação na pessoa de Jesus Cristo.
IV – A LIBERDADE DO HOMEM PARA ATENDER À CHAMADA DIVINA PARA A SALVAÇÃO
– Deus chama todos os homens à salvação. Trata-se de um chamado universal e real, pois o caráter de Deus exige que tal chamada seja extensiva a todos e, mais, que haja uma real oportunidade de salvação aos homens.
Mas, pode alguém perguntar, está o homem em condições de atender ao chamado de Deus? Tem o homem o poder de escolher entre o bem e o mal depois que pecou?
– Foi esta, principalmente, a questão que deu início à polêmica a respeito da salvação e do seu alcance, polêmica esta que tem se mantido ao longo da história da Igreja e que atinge, indistintamente, todos os segmentos da Cristandade, como os evangélicos ou protestantes e até mesmo os católicos romanos, até porque a polêmica se apresentou ainda nos primeiros séculos da Igreja, principalmente no século IV, quando foi objeto da controvérsia entre Agostinho, bispo de Hipona, e o monge britânico Pelágio.
Depois, com a Reforma Protestante, foi o objeto da controvérsia entre Erasmo de Roterdã, o autor do “Textus Receptus”, texto que foi a base das traduções da Bíblia para as línguas europeias por parte dos reformadores, e Martinho Lutero, controvérsia, aliás, que se estendeu para as obras de Jacó Armínio, João Calvino e John Wesley bem assim o objeto da controvérsia no seio da própria Igreja Romana, entre os seguidores do bispo Cornelius Jansen e os jesuítas.
Ainda hoje, é o principal pomo de discórdia entre os segmentos evangélicos e o sinal distintivo entre a Igreja Romana e os chamados “veterocatólicos” (ou “católicos antigos”).
– O homem, ao pecar, é dominado pelo pecado. Assim o Senhor afirmou em seu diálogo com Caim (Gn.4:7), sendo confirmado pelas palavras de Cristo quando em um de seus debates com os judeus (Jo.8:34), bem assim descrito este estado pelo apóstolo Paulo na epístola aos romanos, como, aliás, já tivemos ocasião de estudar neste trimestre (Rm.7).
Este domínio é de tal sorte que o homem não tem condições de atender, por si só, ao chamado divino para a salvação?
– Uma linha de pensamento que se iniciou com Agostinho, sendo seguida por Lutero, Calvino e Jansen, em que pesem suas variações de estudioso para estudioso, é no sentido de que o homem não tem condições de, por si só, desprender-se do domínio do pecado, que somente uma intervenção divina é capaz de fazer com que os homens atendam ao chamado para a salvação.
O atendimento ao chamado para a salvação só seria possível àqueles que, de antemão, Deus tenha destinado à salvação, ou seja, Deus, em realidade, somente chamaria à salvação àqueles que, por Sua soberana vontade, quisesse que fossem salvos.
Haveria, portanto, uma “predestinação incondicional”, ou seja, Deus, na Sua presciência, já teria escolhido quem seria salvo e quem não o seria, de modo que só os “predestinados” atenderiam ao chamado para a salvação e, assim, seriam salvos.
Para tanto, entre outros textos, consideram que assim ensinou o apóstolo Paulo em Rm.8:29,30.
– Um entendimento desta natureza, em primeiro lugar, não considera que o chamado divino para a salvação seja universal, algo que ofenderia o caráter de Deus e que contraria frontalmente às diversas afirmações de que, para Deus, não há acepção de pessoas.
Se, entretanto, como se costuma fazer, é dito que o chamado divino é universal mas que só tem condições de atendê-lo aqueles que Deus quiser, então se teria a situação absurda de que Deus não faria um chamado realmente universal, que não haveria sinceridade na universalidade de tal chamado, o que, também, seria evidente ofensa ao caráter divino.
– Mas, se não houvesse a questão relativa à chamada divina para a salvação, que, por si só, já desmerece esta doutrina da “predestinação incondicional”, tem-se que esta linha de pensamento parte de uma premissa, qual seja, a de que, ao pecar, o homem perde o seu livre-arbítrio. Será esta premissa verdadeira?
– Quando analisamos o diálogo de Deus com Caim, vemos que o Senhor diz, textualmente, que, se ele pecasse, o pecado o dominaria. Não resta dúvida de que o homem, quando peca, passa a ser escravo do pecado.
Mas esta escravidão é tal que o homem perca o seu livre-arbítrio? Parece-nos que não. Quando Deus volta a falar com Caim, depois que este havia pecado, dá-lhe o sinal, a fim de impedir que ele fosse morto.
Por que Deus fez isto? Dirão alguns, porque Deus foi misericordioso, porque Deus quis demonstrar o Seu amor para com Caim.
Mas, diante de tal resposta, poderíamos indagar: para que Deus mostrou o Seu amor para Caim?
Só há uma resposta possível: Deus mostrou Seu amor para Caim para que este pudesse atender o chamado à salvação.
O “sinal de Caim” não tem qualquer sentido senão para concessão de uma nova oportunidade para a sua salvação, oportunidade, entretanto, que foi desperdiçada.
– De igual maneira, quando analisamos a questão relativa à geração do dilúvio, por que Deus deixou que Noé pregasse durante cem anos a respeito da justiça divina?
Precisamente para que o povo pudesse ser chamado ao arrependimento, ser chamado à salvação.
Também não deram ouvidos ao pregoeiro da justiça, mas isto não retira o fato de que foi dada uma chance de arrependimento, de que houve um chamado à salvação.
– Com respeito ao povo de Israel, então, é o próprio Moisés quem testemunha, ao findar de sua jornada, que se esteve diante de um povo obstinado (Dt.9:6), testemunho, aliás, que é reprodução do testemunho do próprio Deus (Ex.32:9; 33:3; Dt.9:13).
Porém, o fato de Deus ter considerado o povo obstinado não impediu que o Senhor atendesse ao clamor de Moisés e perdoasse o povo, depois do episódio do bezerro de ouro (Ex.34:9,10), dando-lhe uma nova oportunidade que, infelizmente, foi desperdiçada quando do retorno dos espias.
– Percebemos, portanto, que, mesmo após o pecado, Deus abriu oportunidade de arrependimento para os homens, prova de que o livre-arbítrio, ou seja, a liberdade para escolher deixar a vida de pecado e tornar a fazer o bem, é possível ao homem, mesmo estando sob o domínio do pecado.
Para tanto, será preciso que o homem creia na Palavra de Deus, confie na Sua promessa e, num gesto de fé, passe a viver de acordo com a vontade de Deus a partir de então.
– É preciso, porém, não incidir no erro doutrinário trazido por Pelágio (350-423), que ensinava que o homem, depois do pecado de Adão, não tinha uma natureza depravada, ou seja, os descendentes de Adão tinham igual condição para escolher entre o bem e o mal como Adão, que teria servido apenas de “exemplo” para os seus descendentes.
Entretanto, em Gn.5:3, é claríssimo que Sete, o primeiro homem a invocar o nome do Senhor (Gn.4:26), foi criado à imagem e semelhança de Adão, ou seja, teve uma natureza decaída, depravada, não podendo, portanto, ter livre escolha do bem, mas escolhendo necessariamente o mal, vez que, quando Adão pecou, todos os homens pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Rm.3:23; 5:12).
Esta depravação é total, toda a natureza do homem é pecaminosa, por isso é necessário que a graça de Deus se apresente ao homem para que ele possa não só ter conhecimento de que Deus quer salvá-lo, como também condições para poder atender a este chamado. Sem esta graça, jamais o homem poderia optar por receber a Cristo Jesus como seu único e suficiente Senhor e Salvador.
– Também não podemos cometer o equívoco de João Cassiano (360-435), cuja doutrina foi chamada de “semipelagianismo”, segundo a qual, embora o homem não tenha mais a condição de Adão antes do pecado, não tendo capacidade de, por si só, escolher o bem e rejeitar o mal, teria, sim, a condição de estabelecer uma “boa vontade” para com Deus e, a partir desta “boa vontade” é que Deus dele Se aproximaria para lhe oferecer a salvação.
O homem é mau (Mt.7:11), e, portanto, não pode ter qualquer “boa vontade” para com Deus.
Deus é quem toma a iniciativa, é Ele que tem “boa vontade” para com os homens, que é precisamente a graça e é por causa desta “boa vontade” que o homem poderá atender ao chamado à salvação.
Isto fica, aliás, bem claro quando os coros celestiais, ao celebrar o nascimento de Jesus Cristo, diz que estava ali demonstrada a “boa vontade para com os homens” (Lc.2:14).
– Assim como a chamada divina é fruto da soberania divina e só existiu porque Deus o quis, também o atendimento ao chamado da parte de Deus não depende de Deus, mas, sim, do homem.
Deus não iria chamar todos os homens ao arrependimento, sabendo que todos os homens pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Rm.3:23), se todos os homens não pudessem, pela fé em Cristo Jesus, atender ao chamado.
Por isso, o apóstolo Paulo dirá que, com o coração se crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação (Rm.10:10). Todos os homens, sejam judeus ou gregos, que invocarem o nome do Senhor, ou seja, atenderem ao chamado divino, serão salvos (Rm.10:11,13).
– Quem atender ao chamado de Deus estará predestinado a ser conforme a imagem de Cristo, ou seja, o atendimento ao chamado de Deus é que nos torna participantes da natureza divina, que nos dá nova vida, que nos faz ser novas criaturas. Aqueles que atendem ao chamado de Deus estão predestinados a terem a mesma imagem e semelhança do segundo Adão, a imagem sem qualquer distorção.
Os filhos de Deus são diferentes dos demais homens, porque, ao atenderem ao chamado divino, nascem de novo, têm um caráter diferente, vivem de modo diverso do dos demais homens, porque passam a ser espelhos da glória de Deus, assim como é Cristo Jesus e, por isso, Jesus Se torna o primogênito entre muitos irmãos, pois passam estes homens a ser herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo.
É este, pois, o real sentido de Rm.8:29.
– A “predestinação”, portanto, não é uma escolha prévia de Deus de quem será salvo e de quem será condenado, pois isto não diz respeito ao exercício da soberana vontade divina, mas, sim, à aceitação, ou não, da chamada divina, algo que Deus, por Sua soberana vontade, quis que ficasse a critério do homem, na liberdade do homem.
A “predestinação” é, isto sim, o prévio estabelecimento das propriedades e das características que terá aquele que aceitar o chamado divino para a salvação.
Assim, que atender ao chamado para a salvação, usando do seu livre-arbítrio, será justificado, ou seja, por ter aceitado a chamada divina para a salvação, passará a ser considerado inocente diante de Deus apesar de seus pecados; será, também, liberto do domínio do pecado, ficando dele separado, ou seja, será santificado e, se assim permanecer até o fim da sua vida terrena, também alcançará a glorificação, ou seja, receberá, quando do arrebatamento da Igreja, um corpo glorioso, no qual ingressará na dimensão da glória divina, da qual não está mais destituído. Este é o destino que está traçado, de antemão, para todos quantos aceitarem o chamado divino, destino este que se encontra retratado em Rm.8:30.
É a chamada “predestinação condicional”.
OBS: “…Para Wesley, verdadeira predestinação consiste no seguinte: “1. Aquele que crê é salvo da culpa e do poder do pecado; 2. Aquele que persevera até o fim será salvo por toda a eternidade; 3. Aqueles que recebem o precioso dom da fé se tornam assim filhos de Deus; e já que são filhos de Deus, receberão o Espírito de santificação que os capacitará a andar como Cristo andou”. (Azenilto G. BRITO. A verdade sobre a “predestinação”. http://www.google.com/search?q=cache:OEZLAosWaH8J:www.azenilto.com/parte-1-PREDESTINACAO.html+Wesley,+predestina%C3%A7%C3%A3o&hl=pt-BR Acesso em 27 dez. 2005).
– Mas, dirão alguns, como explicar a expressão do apóstolo, no início de Rm.8:29, “os que dantes conheceu”? Não haveria aí uma comprovação de que Deus só conhece aqueles que antes escolheu para serem chamados à salvação? A resposta é negativa.
O apóstolo fala a respeito da “presciência de Deus”, ou seja, do fato de que Deus tudo sabe de antemão, mas isto não significa que tenha desfeito o livre-arbítrio do homem ou não o leve em consideração na Sua presciência.
Deus é onisciente e, por isso, tem conhecimento a respeito do destino de todos os homens, mas isto não O impediu de criar uma oportunidade de salvação a todos os homens.
Como diz Jacó Armínio, ao predestinar, o Senhor já considerou a condição dos homens como pecadores. A eleição divina, como diz Paulo em Ef.1:4, é feita “em Cristo Jesus”, ou seja, os que crerem em Cristo estão destinados previamente à salvação, oportunidade dada a todos os homens.
– A “predestinação”, ainda que estabelecida por Deus, é condicional, ou seja, depende da resposta que o homem der ao chamado divino. O homem é livre, mesmo estando sob o pecado, pode crer.
O pecado não o impede de crer em Cristo Jesus, de crer no Evangelho e, portanto, se arrepender dos seus pecados. A pregação de Jesus era dirigida a todos os israelitas, sem qualquer exceção: “Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc.1:15).
Jesus disse ter vindo para as ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt.15:24), não para as “ovelhas previamente escolhidas da casa de Israel”. Por isso, só foram destinados à justificação, à santificação e à glorificação aqueles que O receberam como Salvador, como nos dá conta o apóstolo João (Jo.1:11-13).
– E quem não aceita o chamado divino para a salvação? Está também “predestinado”?
A resposta é afirmativa. Quem não aceita o chamado divino para a salvação, também tem seu destino previamente traçado pelo Senhor.
Todos que rejeitam a Cristo permanecerão no pecado, continuarão destituídos da glória de Deus e serão lançados na fornalha de fogo ou trevas exteriores, onde há pranto e ranger de dentes (Mt.8:12; 13:42,50; 22:13; 25:30; Lc.13:28).
Aliás, é importante que se diga aqui, este lugar não foi, inicialmente, destinado aos homens, mas, sim, ao diabo e seus anjos (Mt.25:41), que é mais uma evidência de que o chamado de Deus é universal, dirigido a todos os homens e que não havia prévia escolha por parte do Senhor de quem iria se salvar, ou não, pois, caso contrário, o fogo eterno estaria preparado não só para o diabo e seus anjos, mas para o diabo, seus anjos e os predestinados à perdição.
– Foi dentro deste contexto que Jesus, no sermão do monte, disse haver dois caminhos e duas portas (Mt.7:13,14), imagem que ficou tão marcada na Igreja que os crentes se identificavam como sendo integrantes do Caminho (At.19:9,23; 22:4; 24:14,22), sendo, também, por esta figura que se inicia a “Didaché”, um dos mais antigos documentos cristãos pós-apostólicos conhecidos, onde se encontra uma verdadeira instrução a respeito do significado da fé cristã:
“Existem dois caminhos, entre os quais, há grande diferença, o que conduz à vida e o que leva à morte” (Didaché I, início. http://escrituras.tripod.com/Textos/Didache.htm Acesso em 22 dez. 2005) (tradução nossa de texto em espanhol). Por que diria o Senhor que há dois caminhos e que devemos seguir o caminho que conduz à vida, se, na verdade, Deus teria escolhido apenas um caminho para cada ser humano, segundo os defensores da “predestinação incondicional”?
– O homem, mesmo tendo pecado, mesmo dominado pelo pecado, não perde a capacidade de se arrepender dos pecados, mediante a crença na Palavra de Deus, no Evangelho.
Por meio da Palavra, o Espírito Santo convence o pecador e este, então, se arrepende, instante em que se converte e passa a ter uma nova vida, nasce de novo, ingressando, assim, no caminho que conduz à salvação.
– Esta manutenção do livre-arbítrio, mesmo diante do pecado, é o cerne das outras linhas de pensamento, uma radical, que acha que o pecado em nada alterou o livre-arbítrio, defendida por Pelágio, como já visto, e outra, moderada, que admite que o pecado escraviza o homem, mas que, nem por isso, foi de todo impedido de se arrepender, linha que encontra em Armínio e Wesley seus principais expoentes, ainda que com nuanças, e que é a linha oficialmente adotada pelas Assembleias de Deus, por ser a doutrina que encontra respaldo nas Escrituras e no caráter de Deus, lembrando que tudo se dá pela boa vontade divina, pela graça de Deus, o que contraria o que diz João Cassiano, que entendia que a boa vontade teria nascimento no homem e não em Deus.
OBS: Entre os judeus, esta sempre foi a posição adotada pelos rabinos.
O maior filósofo judeu Maimônides sintetizou o pensamento judaico a respeito, que vale a pena aqui transcrever: “…Todo ser humano é senhor de suas ações, do que ele faz o do que deixa de fazer.
Se deseja enveredar pelo bom caminho e ser uma pessoa virtuosa, ele tem liberdade para fazê-lo, e se deseja enveredar pelo mau caminho e ser uma pessoa má, também é livre para fazê-lo…O homem é o único ser da criação — e nenhum outro se assemelha a ele nisto — que pode por si mesmo e pelo seu próprio discernimento e por seu próprio pensamento diferenciar entre o bem e o mal… Portanto, não dê ouvidos à conversa vã dos tolos que há entre os ateus, e dos obtusos que há entre os judeus que dizem que Deus determinou para o homem, antes dele nascer, se ele agirá correta ou malevolamente. Isto não é verdade.…” ( apud Nathan AUSUBEL. Livre arbítrio. In: A JUDAICA, v.6, p.513)
V – O PROCESSO DA SALVAÇÃO
– Mas há um outro elemento que mostra como a ideia de que Deus, previamente, tem escolhido os que hão de ser salvos, não se coaduna com as Escrituras Sagradas.
É o fato de que a salvação é apresentada, na Bíblia, como um processo, ou seja, uma sequência de atos, circunstância que não tem sentido a não ser que se admita que a “predestinação” é condicional.
– No texto da epístola aos romanos que é a base de nosso estudo, vimos, logo no limiar deste apêndice, que há um propósito, uma finalidade para a salvação do homem, que é a glorificação do ser humano, o retorno do homem à glória divina da qual está destituído por causa do pecado.
O objetivo a ser alcançado é a glorificação. Somos herdeiros de Deus para sermos glorificados com Cristo (Rm.8:17), as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada (Rm.8:18), a criação toda espera e geme aguardando a libertação da servidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus (Rm.8:21,22), gemido que também é de cada um dos salvos (Rm.8:23).
– Ora, se há esta esperança, se há uma finalidade, um objetivo a ser ainda alcançado, segue-se que a salvação é um processo, ou seja, não se constitui de um único momento, de um instante singular, mas “ação continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade; seguimento, curso, decurso”, que é o significado de processo, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Em latim, “processus” significa “’ação de adiantar-se, movimento para diante, o andar, andamento, marcha”.
A salvação, portanto, não é um ato isolado, mas uma sequência de atos, uma ação continuada, um “caminho” que vai até a glorificação.
– A salvação é, portanto, um “caminho”, exatamente a figura trazida por Jesus no sermão do monte, ou seja, um seguimento, um andar em direção à glorificação. Se assim é retratada a salvação pelo Senhor, como podemos admitir que ela é apenas o resultado de uma prévia escolha de Deus, feita de antemão, que já predeterminou quem é salvo ou não na eternidade?
– A salvação é um processo, cujo ato inicial, como diz o apóstolo Paulo, é a pregação da Palavra de Deus (Rm.10:14,15), ensino que tão somente repete a instrução de Jesus antes de ascender aos céus, quando mandou pregar o Evangelho a toda a criatura (Mc.16:15).
Esta pregação da Palavra de Deus nada mais é que a revelação ao homem da eleição divina, ou seja, Deus escolheu que os homens fossem salvos em Cristo Jesus. É a revelação da vocação, do chamado universal à salvação.
– A pregação leva a Palavra até os ouvidos do pecador e, mediante esta oitiva, vem a fé da parte de Deus ao homem (Rm.10:17; Ef.2:8).
O Espírito Santo, então, convence o homem do pecado (Jo.16:8), e o homem, então, ainda que dominado pelo pecado, crê em Jesus como seu único e suficiente Salvador (Jo.16:9).
Este convencimento do pecado leva ao arrependimento (Mc.1:15; At.2:38), que é o primeiro instante do processo da salvação que depende do homem que será salvo (já que a pregação é feita por homens já foram salvos).
A faculdade de o homem se arrepender é uma demonstração clara de que o homem, sob o domínio do pecado, não perde o seu livre-arbítrio. Se a salvação nasce em Deus, mediante o Seu propósito de salvar (“o Seu decreto”), mediante a Sua Palavra, mediante a fé salvadora levada até o pecador pela Palavra e mediante o Espírito Santo, que convence o pecador, o fato é que tudo isto depende de uma manifestação de vontade do homem, manifestação que todo homem pode efetuar, pois, se assim não fosse, por que Deus mandaria pregar a Palavra a toda a criatura?
– O arrependimento, como explica o próprio apóstolo Paulo, é uma tristeza segundo Deus (II Co.7:10), ou seja, uma tristeza proveniente do reconhecimento de que se errou mas que não se confunde com o remorso. O arrependimento é uma tristeza que opera uma mudança de atitude para com Deus, ou seja, só há arrependimento quando a pessoa muda a sua maneira de viver, ou seja, deixa de proceder em desobediência a Deus para passar a obedecer-Lhe.
O arrependimento, portanto, é o atendimento ao chamado divino para a salvação, como deixou claro o apóstolo Pedro no seu sermão no dia de Pentecostes.
– Quando o pecador se arrepende, deixa a sua vida de pecados e, por isso, muda de direção na sua vida, atitude que os estudiosos da Bíblia denominam de “conversão” e que implica no início da jornada no “caminho apertado que conduz à vida”, como o apóstolo Paulo deixa claro em I Ts.1:9.
Não há salvação sem que a pessoa mude de orientação na sua vida, passe a ter atitudes diferentes, modifique a sua anterior vã maneira de viver recebida do casal primordial, recebida da “velha natureza” que tem sido entregue geração após geração (I Pe.1:18).
A conversão, pois, é a concretização, a realização do arrependimento, quase que como seu complemento, que faz com que o homem arrependido passe a andar no caminho da vida.
– A entrada no caminho da salvação, a entrada no reino de Deus é o que Jesus denomina de “novo nascimento” (Jo.3:5).
No Seu diálogo com o mestre Nicodemos, o Senhor mostra que é preciso nascer de novo para ver o reino de Deus, ou seja, é necessário que o homem creia em Cristo e, mediante esta fé, tome a decisão de abandonar o pecado e passar a trilhar o caminho mostrado pelo Evangelho.
Com o arrependimento e a conversão, operados pela ação da Palavra de Deus e do Espírito Santo (o nascimento pela água e pelo Espírito mencionados por Cristo), o homem vê o caminho que conduz à salvação e, por isso, decide nele entrar.
Tem-se, então, a regeneração, ou seja, o homem nasce de novo, é gerado, surge uma nova criatura, que passa a dominar todo o ser do homem, mediante a vivificação do espírito por Cristo (o espírito é a parte do homem que faz a ligação entre o homem e Deus).
– Ser uma nova criatura, ter morrido para o mundo é o ponto principal da vida cristã (Gl.6:15), o momento em que se entra no reino de Deus (Jo.3:5).
Neste instante, morre “a velha natureza”, natureza esta, porém, que não deixa de conviver no ser humano, pois ainda se está sobre a face da terra, ainda não se conseguiu recuperar a glória divina da qual se estava destituído.
O homem nasce de novo e passa a dominar sobre o pecado, ainda que se tenha de aguardar a remoção do “corpo do pecado”, o que ocorrerá apenas ao término de todo o processo. Este novo nascimento não é fruto do homem, mas, sim, de Deus (Jo.1:13).
– Quando o homem ingressa no caminho da salvação, por ter se convertido, é justificado, ou seja, sem que mereça, o homem arrependido e convertido é declarado justo porque seu pecado é imputado a Cristo e a justiça de Cristo é concedida a ele.
Os pecados são perdoados, por causa do arrependimento, e o castigo devido por causa deles é imputado a Cristo, daí porque o profeta Isaías ter dito que o castigo que nos traz a paz estar sobre Jesus (Is.53:5).
Este perdão e a consequente imputação só são possíveis porque Jesus morreu por nós e pagou o preço pela nossa redenção (I Co.6:20; 7:23; Ap.14:4). Os arrependidos e convertidos estão “predestinados” a serem justificados (Rm.8:30).
– A justificação, portanto, é mais um ato divino que se faz em favor do homem (Rm.5:1) que, por sua própria vontade, por seu livre-arbítrio, se arrependeu dos seus pecados, crendo em Cristo, fé salvadora esta que veio da parte de Deus, e se converteu dos seus caminhos, ato que também depende do livre-arbítrio humano, bem como nasceu de novo, ato que depende também de Deus.
– Com a justificação, o homem passa a ficar livre do poder do pecado, pois, quando recebemos a justiça de Cristo, tornamo-nos verdadeiramente livres, pois Cristo realmente liberta (Jo.8:36).
Entretanto, esta liberdade não é um ato isolado, mas uma continuidade, pois esta libertação deve perdurar até o momento final, que é o da glorificação.
Por isso, o homem justificado deve se manter livre do pecado, se manter separado do pecado, ou seja, deve seguir a santificação (Hb.12:14).
– Esta libertação não torna dispensável a atuação divina contínua no homem que foi justificado. Ele recebe o “espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos Abba, Pai” (Rm.8:15).
Por termos recebido Jesus Cristo, recebemos o poder de sermos feitos filhos de Deus (Jo.1:12) e, como filhos, temos a necessidade de obedecer e honrar o Pai para que tenhamos longevidade de vida, ou seja, nossa vida espiritual depende da obediência, está condicionada à obediência, ou seja, o prosseguimento da salvação depende da obediência, pois somos “filhos de Deus” e temos, a exemplo de Cristo, ser obedientes até a morte (Fp.2:8).
A “adoção”, outro ato do processo da salvação, reafirma a condicionalidade da predestinação.
– Esta continuidade é uma realidade bíblica e que mostra como a salvação não é um ato único da parte de Deus, mas uma ação continuada por parte do homem, tanto que é aconselhado aos crentes que, se santos, sejam santificados ainda (Ap.22:11), necessidade tão grande que o próprio Cristo constituiu na Sua igreja dons ministeriais para que os santos se aperfeiçoem (Ef.4:11-16).
Estas verdades das Escrituras mostram, claramente, que a salvação é um processo, é uma continuidade, tanto que Jesus mandou que perseverássemos até o fim para sermos salvos (Mt.24:13).
– A santificação é um ato que depende do homem. Deus deixou à sua disposição os meios de santificação, entre os quais se sobressai a Palavra (Jo.17:17), mas quem deve se santificar é o homem. Jesus, enquanto esteve sobre a Terra, santificou-Se, ou seja, manteve-Se separado do pecado, para nos dar o exemplo e nos mostrar a possibilidade que o homem tinha de isto fazer enquanto estivesse neste mundo (Jo.17:19).
Sem a santificação, ninguém verá o Senhor e, portanto, a pretensão de alguns de se acharem “predestinados” e, por isso, estarem livres para pecar, não tem qualquer fundamento nas Escrituras. Quem é santo, deve se santificar ainda é o que diz a Bíblia Sagrada.
– O último estágio da salvação é, precisamente, a glorificação, o objetivo de todo o processo, a razão de ser de todo o processo.
Esta glorificação dar-se-á quando do arrebatamento da Igreja, pois, somente neste instante ocorrerá a libertação da servidão da corrupção (Rm.8:21), como Paulo bem explana quando disserta a respeito da ressurreição no capítulo 15 de I Coríntios:
“Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará e os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade e que isto que é mortal se revista da imortalidade.
E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: tragada foi a morte na vitória.” (I Co.15:52-54).
– Neste estágio somente estarão aqueles que tiverem perseverado, que tiverem se mantido fiéis a Deus até o fim, que estiverem vigilantes e se mantiverem santos.
Trata-se de um ato que depende única e exclusivamente de Deus, pois só Ele pode operar a ressurreição e a transformação, como, aliás, fez com Cristo Jesus, as primícias dos que dormem (At.2:24, 32; 3:15; 4:10; 13:37; I Co.15:20,23).
– Esta sequência de atos no processo da salvação está bem delineada pelo apóstolo em Rm.8:30 e a simples existência deste processo é uma demonstração cabal de que a “predestinação” só pode ser entendida de modo condicional, segundo a linha de pensamento de Armínio.
Fosse a salvação uma predeterminação divina, toda esta sequência seria inútil, sem qualquer sentido e, das duas uma:
ou Deus operaria uma grande farsa, exigindo uma sequência de atos inúteis, visto que só bastaria um ato, qual seja, a escolha prévia de Deus, o que seria um verdadeiro contrassenso, uma ofensa ao caráter divino, pois Deus é a verdade; ou, então, não se teria qualquer sequência e, deste modo, inúteis e sem sentido seriam todas as referências bíblicas até aqui expostas.
– Respeitando as opiniões em contrário, que têm encontrado eco ao longo da história da Igreja, assim devemos entender a salvação, como um processo que depende, em alguns aspectos, da participação humana, cujo livre-arbítrio é bem capaz de crer em Cristo por si só, apesar da servidão imposta pelo pecado, mas que é impossível de ocorrer sem a indispensável intervenção divina, que se dá única e exclusivamente por intermédio de Cristo Jesus.
SOBERANIA DIVINA – Deus decide dar uma oportunidade de salvação ao homem
Eleição – ato de Deus (Ef.1:4)
Vocação – ato de Deus, feito pela pregação da Palavra de Deus –
ato do homem (Mc.16:15)
Fé Salvadora – Deus – dom de Deus (Ef.2:8)
O Arrependimento – ato do homem (Mc.1:15)
Processo Conversão – ato do homem ( I Ts.1:9)
da Regeneração – ato de Deus (Jo.3:5)
Salvação Justificação – ato de Deus (Rm.5:1)
Adoção (Rm.8:15,16)
(predeterminado Santificação – ato do homem, ajudado por Deus (Hb.12:14;
por Deus) Ef.4:11,12)
Glorificação – ato de Deus (I Co.15:52)
Ev. Dr. Caramuru Afonso Francisco
Um comentário
Genésio Augusto da Silva
Assunto muito interessante. Na maioria dos casos, as pessoas se interessam pelo quesito entrar no céu, e dizem que o resto não tem importância.Mas podemos perceber que um sem número de outras pessoas gostam de penetrar nesses pormenores a respeito da salvação.Obrigado por nos ajudar a elucidar essas minucias.Paz do Senhor Jesus Cristo!