LIÇÃO Nº 3 – JUSTIFICAÇÃO, SOMENTE PELA FÉ EM JESUS CRISTO
O homem, dominado pelo pecado, somente alcança justificação na pessoa de Cristo Jesus.
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INTRODUÇÃO
– Como temos visto, o pecado alcançou toda a humanidade e, por suas próprias forças, não poderia o homem dele se libertar. Destituído da glória de Deus e sem condições de voltar a ter paz com o seu Criador, o homem estava condenado a uma eterna separação.
– Paulo, então, começa a dar notícia do que é a boa notícia que Deus trouxe ao homem, qual seja, a de que, mediante a pessoa de Cristo Jesus, não só o homem se livra do poder do pecado, como também pode ser declarado justo diante de Deus. É esta declaração de justiça que se denomina de justificação, o cerne, o âmago, a essência do Evangelho.
I – A SOLUÇÃO DIVINA PARA O ESTADO PECAMINOSO DA HUMANIDADE
– Depois de ter mostrado que tanto judeus quanto gentios estão dominados pelo pecado, o apóstolo conclui que a lei só serviu para que os judeus tivessem conhecimento do pecado, mas não tinha condições de libertá-los do domínio do maligno.
Esta, aliás, é uma das principais razões pelas quais não podemos ser legalistas nem judaizantes, como têm sido vários segmentos cristãos desde o início da dispensação da graça, como dão conta os livros do Novo Testamento, em especial o livro de Atos e as epístolas paulinas.
– A lei provém de Deus e, portanto, como o apóstolo, na continuação da sua epístola aos romanos terá oportunidade de declarar, é santa, justa e boa (Rm.7:12), nem poderia deixar de sê-lo, vez que foi dada pelo próprio Deus(Ex.20:1), Que é bom(Mt.19:17), santo(Lv.11:44) e justo(Ex.9:27).
No entanto, a lei só tem o poder de fazer o pecado conhecido do homem. Com efeito, o povo de Israel, ao receber a lei e a ser instruído na lei a partir da geração que a recebeu, tinha pleno conhecimento da vontade de Deus, mas isto não o impediu de pecar.
A lei, portanto, só aumenta a responsabilidade do ser humano, sem contudo conseguir libertá-lo do poder do pecado.
O homem conhece, pela lei, a vontade de Deus, mas, mesmo assim, peca, a começar do próprio Moisés que, embora tenha sido o instrumento escolhido por Deus para transmitir a lei ao povo (Jo.1:17), não entrou na Terra Prometida, porque pecou (Nm.27:13,14).
– A lei, portanto, não tem o poder de fazer com que o homem volte a ter comunhão com Deus, volte a ter vida, motivo por que o apóstolo diz que “nenhuma carne será justificada diante d’Ele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm.3:20).
A lei não salva pessoa alguma, a lei não consegue pôr uma pessoa em comunhão com Deus, porque não elimina o pecado, que é a causa da separação, da divisão entre Deus e os homens (Is.59:2).
Este é o motivo pelo qual não podemos adotar a postura legalista e judaizante de alguns segmentos religiosos, que proliferam nos últimos tempos (a começar pelos sabatistas), porquanto, se confiarmos na lei para a nossa própria salvação, estaremos nos condenando à perdição, pois a lei a ninguém salva.
Aliás, o apóstolo Paulo é claríssimo ao afirmá-lo na sua epístola aos gálatas, um texto que, por ser oportuno, transcrevemos:
“Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque escrito está: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.”(Gl.3:10).
– Mas, então, existe salvação para o homem? O apóstolo responde afirmativamente, ao dizer que a essência da mensagem evangélica é a de que “agora se manifestou, sem a lei, a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas, isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem, porque não há diferença.” (Rm.3:21,22).
– A boa nova da salvação é de que, apesar de o homem não ter condições de, por seus próprios meios, obter um meio de se reconciliar com Deus, visto que nem a consciência e a revelação de Deus pela natureza, nem a lei o podem libertar do pecado, Deus providenciou uma forma de que isto se faça, mediante a fé em Jesus Cristo.
Se é verdade que o pecado se estendeu a todos os homens, sejam judeus, sejam gentios, e que, por causa dele, todos os homens estão destituídos da glória de Deus (Rm.3:23), também é verdade que os homens podem, agora, ser justificados gratuitamente por Deus pela Sua graça e pela redenção que há em Cristo Jesus (Rm.3:24).
– Percebe-se, pois, em primeiro lugar, que a mensagem do Evangelho pressupõe o reconhecimento do estado pecaminoso da humanidade. Não se pode pregar o Evangelho sem que se perceba que todos os homens pecaram e estão destituídos da glória de Deus.
Este é um princípio básico para que o homem alcance a salvação. Por isso, Jesus, ao iniciar a Sua pregação, após a prisão de João Batista, conclamava o povo ao arrependimento (Mc.1:15), ou seja, é preciso que o homem se reconheça um pecador e resolva se arrepender destes pecados para que venha a ter salvação.
– Não é por outro motivo que uma das principais armas do inimigo de nossas almas, nestes dias, tem sido o de convencer os homens de que eles não são pecadores ou, ainda, de que o pecado não existe, precisamente para que não haja sequer a condição de possibilidade para que o homem venha a ter a salvação.
É por isso, mesmo, que se constitui em uma grave falta da parte daqueles que dizem conhecer as Escrituras um comportamento de indiferença entre mal e bem, entre certo e errado, entre santo e profano, conduta que é abominável ao Senhor (cf. Is.5:20. Ez.22:26; Hb.10:29).
Neste ponto, aliás, percebemos a gravidade de condutas cada vez mais comuns e aceitas em nossas igrejas locais, relativas a várias aspectos da vida na igreja, com realce para o louvor.
– O pecado existe e é resultado da desobediência do homem, da sua rebeldia contra a soberania de Deus e, por causa dele, há uma separação entre Deus e os homens, mas, como Deus é o soberano e isto em nada é alterado pela conduta errada do homem, tem-se que sobrevém à humanidade a penalidade decorrente da prática do pecado.
Com o pecado, o homem comete uma injustiça, uma iniquidade (por isso que todo pecado é iniquidade, cf. I Jo.3:4) e deve ser responsabilizado por esta prática, conforme a lei já determinada por Deus antes que o pecado fosse cometido, qual seja, a morte, a separação entre o homem e Deus (cf. Gn.1:16,17), a destituição da glória de Deus, penalidade, aliás, que foi a mesma que foi sofrida pelo diabo e seus anjos, quando também pecaram (cf. Is.14:12-15; Ez.28:14,17; Lc.10:18).
– A justiça de Deus, portanto, num primeiro instante, surge como sendo a aplicação da penalidade sobre o homem, a sua expulsão da presença de Deus, a sua destituição da glória de Deus, o que, aliás, vemos retratado no processo a que se submeteram os nossos primeiros pais, descrito em Gn.3:9-24.
No entanto, neste mesmo processo, o próprio Deus anunciou que haveria de reverter esta situação, mediante a semente da mulher que triunfaria sobre a semente da serpente (Gn.3:15).
Martinho Lutero, ao estudar a epístola aos romanos, interpreta esta mensagem, que os estudiosos das Escrituras denominam de “protoevangelho” (i.e., o primeiro anúncio da salvação), como sendo o anúncio de que Cristo (a semente da mulher) esmagaria o pecado (a semente da serpente), que a fé em Jesus suplantaria a incredulidade, considerado pelo grande reformador como sendo o “único pecado”, baseando-se para dizê-lo em Jo.16:9.
– A justiça de Deus, portanto, não se apresenta como uma simples punição de Deus sobre o injusto, sobre o pecador, mas, sim, como o meio pelo qual Deus proporciona ao homem a retomada da vida, a libertação do pecado, o retorno à comunhão com Deus.
A justiça de Deus nada mais é que a fé em Cristo de Jesus, sem a lei, sem as obras, que nos torna novamente justos diante do Senhor.
II – A PROPICIAÇÃO DOS PECADOS EM CRISTO JESUS
– Como se dá esta justiça de Deus que, em vez de punir o pecador, declara-o justo diante de Deus gratuitamente? O apóstolo mostra-nos que esta justificação se dá pela fé em Jesus Cristo. Quem crê, diz o apóstolo, alcança a justificação.
– Cremos em Jesus e, por isso, somos justificados. Isto quer dizer que, em Jesus, é que se encontra a justiça de Deus, em Jesus é que se encontra a satisfação da justiça divina, visto que, como nós pecamos, estamos sujeitos à pena de morte, ou seja, à separação de Deus, à destituição da glória de Deus.
Como, então, podemos ser declarados justos?
– Paulo diz-nos que Deus escolheu a Cristo para ser a “propiciação” dos pecados, através do Seu sangue (Rm.3:25). Quando falamos em propiciação, estamos a falar do mundo dos sacrifícios, das relações entre a divindade e o homem.
Com efeito, se vamos ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, vemos que propiciação é “ação ou ritual com que se procura agradar uma divindade, uma força sobrenatural ou da natureza etc., para conseguir seu perdão, seu favor ou sua boa vontade”, “sacrifício ou oferenda que se faz para aplacar a ira dos deuses”.
Este conceito, típico dos povos da Antiguidade, também não era estranho ao povo de Israel que, uma vez ao ano, realizava um sacrifício solene ao Senhor para aplacar a Sua ira em virtude dos pecados do povo, o sacrifício realizado pelo sumo sacerdote, no dia da expiação, no décimo dia do sétimo mês, única oportunidade em que ele entrava no Santo dos Santos (ou lugar santíssimo), conforme se descreve, entre outras passagens, em Lv.16:29-34.
– Neste dia, depois de fazer sacrifício por si, o sumo sacerdote imolava um animal e levava o sangue do animal até o lugar santíssimo (Hb.9:7), onde estava a arca, cuja tampa era, precisamente, o propiciatório (Ex.25:17,21), lugar onde Deus falava com Moisés (cf. Ex.25:22) e de onde provinha a paciência de Deus, ou seja, onde Deus aplacava a Sua ira com o povo e, por mais um ano, não expulsava Israel da Sua presença, cobrindo, assim, os pecados do povo, adiando a execução da Sua justiça (Sl.32:1,2).
No entanto, esta propiciação era temporária, tanto que precisava ser renovada a cada ano, como determinava a lei.
– Por ser temporária, como bem aponta o autor da epístola aos hebreus, era apenas uma figura, um símbolo, uma figura do que estava por vir (Hb.9:8-10), pois Deus havia prometido resolver a questão, o que, mediante a lei, não havia se realizado ainda. Ademais, tanto a propiciação no dia da expiação (como era conhecido o dia do sacrifício propiciatório, festividade que os judeus até hoje comemoram, o chamado dia do “Iom Kipur”) não era senão um símbolo, que, na verdade, deixou de ser praticado como determinado na lei após a destruição do Primeiro Templo, já que a arca desapareceu quando da destruição do templo por Nabucodonosor, o que nos dá a entender que jamais houve arca e seu correspondente propiciatório no período do Segundo Templo, ocasião em que se cristalizou o ritual até hoje existente entre os judeus para a celebração do Iom Kipur.
Tais circunstâncias mostram, claramente, que o ritual era apenas uma figura da verdadeira propiciação, pela qual aguardava a paciência de Deus (Rm.3:25).
OBS: “…Com a destruição final do santuário nacional em Jerusalém, houve uma inevitável perda de ênfase da expiação coletiva através da transferência mágica de todos os pecados para um animal que servisse de bode expiatório; cada vez mais o indivíduo passou a assumir a responsabilidade moral de suas próprias ações.(…).
A ‘expiação’ era agora arrependimento — uma transformação que o indivíduo devia sofrer ‘por dentro’, e alcançá-la era o objetivo de todos os ritos e orações do Iom Kipur.(…).
O Iom Kipur é observado com austeridades apropriadas, com orações contínuas e expressões de dor e de arrependimento. Tudo isto se faz para que o dia santificado fique de acordo com a ideia moral da expiação.
Os Sábios Rabínicos concordavam em que o indispensável para uma expiação sincera era ‘um coração contrito’…” (AUSUBEL, Nathan. Iom Kipur. In: A Judaica, v.5, p.382-4).
– É por este motivo que João Batista, ao contemplar Jesus, não hesitou em mostrar-Lhe como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo.1:29 “in fine”), coroando o seu ministério preparatório para o Senhor e revelando, deste modo, que o principal trabalho de Cristo seria o de ser o propiciatório definitivo, o meio pelo qual os homens seriam favoráveis a Deus.
Através do Seu sangue, diz-nos o apóstolo, Jesus assumiu o castigo que deveria ser suportado pelos pecadores, morreu em nosso lugar e, por causa disto, tirou o pecado, pagando o preço da nossa redenção, da nossa libertação do pecado. Ele é o Cordeiro, ou seja, aquele que dá Sua vida em lugar do pecador, que sofre a pena em lugar de quem pecou.
Ele é de Deus, porque foi enviado pelo Pai para realizar esta obra (Jo.3:16; 17:4; Hb.10:7). Ele tira o pecado do mundo, porque, ao morrer, sem pecado (Hb.4:15), pagou o preço pelos nossos pecados e, portanto, de uma só vez, conquistou o favor de Deus a todos os homens que crerem na Sua obra (Hb.9:11-14).
– Ao fazer com que Jesus fosse a propiciação pelos nossos pecados, Deus mostra-Se favorável para com os homens.
Jesus morreu em nosso lugar, derramou Seu sangue na cruz do Calvário, para que o homem pudesse, novamente, ter livre acesso a Deus.
A morte de Cristo era o preço, a “ferida no calcanhar” da semente da serpente, para que o homem pudesse alcançar o perdão dos seus pecados e a sua justificação.
Jesus morreu pela humanidade, apesar de nunca ter pecado e não merecer, por isso, a pena decorrente da prática do pecado.
Mas ao Se entregar pela humanidade, Cristo tornou-Se a propiciação pelos pecados de todos os homens e, mediante esta obra, podemos alcançar o favor divino.
– Jesus aplacou a ira de Deus de modo definitivo. Pelo sacrifício, Deus teve satisfeita a Sua justiça (Is.53:11) e, portanto, pode, agora, distribuir este favor conquistado por Cristo, mediante a propiciação, obtida pelo Seu sacrifício único no Calvário, a todos os homens que crerem, isto é, que aceitarem que o único caminho pelo qual nós nos chegamos a Deus é através do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
– A morte de Cristo tem uma dupla finalidade e alcance. Em primeiro lugar, serve para mostrar a justiça de Deus pela remissão dos pecados, dantes cometidos, sob a paciência de Deus (Rm.3:25).
Através do derramamento do sangue de Cristo, Deus nos mostra que havia permitido a prática do pecado e não havia levado o homem a juízo, não havia derramado a Sua ira sobre a humanidade por causa do plano da salvação do homem na pessoa de Cristo.
Os pecados anteriormente cometidos, antes que se tivesse a revelação de Cristo e de Sua obra, são cometidos sob a paciência de Deus, e alcançados pelo perdão, porque o objetivo do plano divino é a salvação de todos os homens (I Tm.2:4).
– A obra de Cristo, portanto, é retrospectiva, ou seja, alcança a todos os homens que viveram antes mesmo da revelação de Cristo aos homens e da revelação de Cristo a cada homem.
Como nos mostra o escritor aos hebreus, no capítulo 11, a fé já estava presente na vida dos homens desde a primeira geração, vez que o primeiro herói da fé mencionado é Abel.
O que justifica o homem, deixa-nos claro o apóstolo Paulo nesta carta aos romanos, é a crença, a confiança em Deus na Sua promessa de redenção do homem, promessa feita ainda no Éden ao primeiro casal. Jesus veio, na plenitude dos tempos (Gl.4:4), cumprir o propósito divino, mas a Sua obra tem um valor que supera o tempo histórico em que ela se realizou sobre a face da Terra.
Cristo proporciona a salvação de toda a humanidade, em todas as épocas, pois só por meio d’Ele há salvação.
– Dirão alguns que tal pensamento estaria em contradição com o que Paulo diz, no limiar da epístola, quando disse que os homens terão diferentes critérios de julgamento, uns pela consciência, outros pela lei (Rm.2:12). Todavia, contradição alguma há.
O que estamos a dizer é que o valor da propiciação de Cristo alcança a todos os homens de todas as épocas, ou seja, se os homens alcançarão salvação mesmo antes da formação de Israel ou da lei (como é o caso de Abel, Enoque, Noé, que estão na relação dos heróis da fé em Hebreus 11), isto se deve única e exclusivamente ao fato de que Cristo morreu em nosso lugar e pagou o preço da nossa remissão, do perdão dos nossos pecados.
Seu sacrifício alcança toda a humanidade, independentemente do critério que se fará quando do julgamento de cada ser humano. Se algum homem for considerado justo diante de Deus, isto se deveu à propiciação dos pecados pelo sangue de Cristo.
– Poderão, ainda, alguns dizerem que Deus executou juízos sobre a humanidade antes da propiciação dos pecados por Cristo no Calvário e que, portanto, não se teria como dizer que houve a “paciência de Deus” como descrito em Rm.3:25.
Aqui também labora em equívoco quem assim pensar.
Não resta dúvida de que Deus executou juízos sobre os homens, quando estes atingiram a medida da Sua longanimidade, mas, antes que estes juízos tivessem sido executados, Deus sempre deu oportunidade aos homens para que se arrependessem e o arrependimento os poupou do juízo, como se vê nos casos de Noé e sua família, no caso do dilúvio; de Ló e suas filhas, no caso da destruição de Sodoma e de Gomorra, como também de Raabe e sua família, no caso dos primitivos habitantes da Palestina e de todos os habitantes de Nínive, cujo comportamento fez com que o juízo fosse suspenso.
Todos os que se arrependeram, fizeram-no porque creram em Deus, creram na Sua Palavra.
Ora, ao crer na Palavra de Deus, mesmo que não o soubessem, estavam a crer no propiciatório (de onde Deus vinha a falar com o povo), estavam a crer no Verbo, ou seja, em Cristo Jesus (Jo.1:1,2,14), que só Se revelaria como tal na plenitude dos tempos (Gl.4:4).
Assim, é o sacrifício de Cristo que concede a justificação destes homens, ainda que eles não tivessem tido a oportunidade que temos de hoje saber, claramente, qual é a propiciação dos nossos pecados (I Jo.2:2).
OBS: A propósito, Jesus mesmo disse que muitos profetas e reis gostariam de ter visto o que viram os Seus discípulos e não puderam (Lc.10:24), como a indicar que haviam crido sem que pudessem ter noção exata do que estava para vir, ensino este repetido pelo apóstolo Pedro, como se vê em I Pe.1:10-12.
– Ao falar que o sacrifício de Cristo alcança desde o início da história da humanidade até o último homem que haverá de nascer nesta Terra antes do final da história, ao término do reino milenial de Cristo, vemos como é totalmente sem respaldo bíblico o falso ensino da “maldição hereditária”, que traz uma indevida limitação ao valor do sacrifício vicário de Jesus no Calvário.
Paulo é claríssimo ao dizer que no sangue de Cristo temos a propiciação dos pecados no aspecto retrospectivo, ou seja, “os pecados dantes cometidos sob a paciência de Deus”. Desta maneira, como acreditar na história de que devemos nos livrar de maldições espirituais causadas por nossos antepassados, como defendem estes falsos mestres?
“Se alguém está em Cristo, nova criatura é, as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo” (II Co.5:17).
Se o valor do sacrifício de Cristo atinge até Abel, como não atingiria o nosso passado? Tal doutrina é mais um ardil satânico para pôr em dúvida a nossa fé em Jesus e no Seu sacrifício e devemos, portanto, repudiar este ensino, pois sua finalidade é fazer-nos deixar de crer em Jesus, deixar de obter o benefício da salvação oferecida gratuitamente por Deus a cada ser humano.
Quando vier alguém com este falso ensino, ajamos como o Senhor agiu em relação a Pedro: “Para trás de Mim, Satanás, que Me serves de escândalo, porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens” (Mt.16:23).
– Mas, além de seu valor retrospectivo, que atinge não só a toda a humanidade, mas o passado de cada ser humano, a propiciação traz o favor de Deus para o tempo presente (Rm.3:26), ou seja, no tempo chamado Hoje (Hb.4:7), é possível obtermos o favor divino, crendo em Jesus como nosso Senhor e Salvador, bem como, caso pequemos depois de termos sido reconciliados com Deus, obtermos, mediante o arrependimento, o perdão do pecado cometido por intermédio de Cristo Jesus (I Jo.1:9-2:2).
– A eficácia do sangue de Cristo é algo presente, que pode ser alcançada por quem quer que creia em Jesus. Através da fé, portanto, temos os nossos pecados perdoados (o que se denomina de “remissão”) e, desta maneira, vemos que Jesus é justo e nos faz justos, ou seja, é justificador daqueles que creem n’Ele.
Daí as palavras de Agostinho, segundo o qual, “ ele [o apóstolo Paulo, observação nossa] não fala da justiça de Deus, pelo que Deus é justo, mas daquilo com o que Ele veste uma pessoa quando Ele justifica os ímpios”.
– A morte de Cristo nos faz favoráveis a Deus, aplaca a Sua ira de forma definitiva diante dos homens e, portanto, os homens não têm qualquer motivo de se gloriar por causa da justificação.
A vanglória ou jactância do homem é, pois, “…atitude censurável, porque o homem não conquista a justiça, mas a recebe como dom.
E o ato de fé, mais do que qualquer outro, exclui tal suficiência, porque, no meio dele, o homem atesta explicitamente sua insuficiência radical…” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, nota f, p.1971).
– A justificação do homem, portanto, dá-se por meio não do homem, mas, sim, por meio da fé.
Quem crê em Jesus, quem dá crédito ao Seu sacrifício na cruz do Calvário, quem reconhece que seus pecados foram perdoados por intermédio desta morte, tem seus pecados perdoados e alcança uma nova posição diante de Deus.
Não é mais um ímpio, mas, sim, alguém que será considerado justo por Deus, pois o Senhor é justo e justificador daquele que tem fé em Jesus (Rm.3:26).
III – A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ EM CRISTO JESUS
– O que é justificar? O que significa Deus ser justificador daquele que tem fé em Jesus? Diz o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que “justificação” é “ação ou efeito da graça divina, que torna os homens justos”, “restituição à inocência original”.
Como afirma J.I. Packer, “…é um termo forense que significa ‘absolver’, ‘declarar justo’, o oposto exato de ‘condenar’ (cf. Dt.25:1; Pv.17:15; Rm.8:33).
A justificação é um ato próprio do juiz. Do ponto de visto do litigante, por conseguinte, ‘ser justificado’ significa ‘obter o veredicto’ (Is.43:9,26)…” (Justificação. In: DOUGLAS, J.D. (org.). O novo dicionário da Bíblia, v.II, p.896).
– Os homens, por causa do pecado, estavam condenados à morte, ou seja, à separação de Deus, estavam impedidos de desfrutar da glória de Deus, da qual haviam sido excluídos, mas, como Jesus morreu em lugar dos homens, fez-Se propiciação dos nossos pecados, ou seja, permitiu que recebêssemos o favor divino, pois, ao crermos em Cristo, nossos pecados são perdoados, pois o castigo que merecíamos é atribuído a Jesus e, em virtude disto, não mais somos condenados, mas somos absolvidos, ou seja, declarados justos diante de Deus.
Esta declaração de justiça, esta mudança de posição que ocorre, pois de perdidos e excluídos da presença de Deus, passamos a ser salvos e a ter comunhão com Deus novamente, é o que denominamos de justificação.
– Esta justificação não se dá por causa das obras que tenhamos praticado, nem tampouco é fruto da lei concedida a Israel por intermédio de Moisés, mas, única e exclusivamente, resultado do sacrifício de Jesus que, sem pecado, fez-Se pecado pelos homens, morrendo em nosso lugar, pagando o preço da morte para nos libertar do pecado. Como alcançamos a justificação? Diz o apóstolo: pela fé em Jesus (Rm.3:24,28).
OBS: “…Para Paulo, a justificação significa o ato de Deus que redime os pecados de homens culpados e que os reputa retos, gratuitamente, por Sua graça, mediante a fé em Cristo, à base, não de suas próprias obras, mas do representante obediente à lei, que derramou seu sangue a favor dos mesmos, o Senhor Jesus Cristo (quanto às diversas porções desta definição, vd Rm. 3:23,26; 4:5-8; 5:18 e seg.).
A doutrina de Paulo sobre a justificação é sua maneira característica de formular a verdade central do evangelho — Deus perdoa os pecadores crentes. Teologicamente, é a mais altamente desenvolvida expressão desta verdade no Novo Testamento.…” (PACKER, J.I., op.cit., p.896-7) (negrito original)
– Quando o homem se arrepende dos seus pecados e crê que Jesus é o Salvador, não somente obtém o perdão dos seus pecados, como, a partir daquele momento, é declarado justo por Deus, ou seja, o castigo que merecia receber pelos seus pecados, isto é, a morte, a separação de Deus, é atribuído a Cristo e, por causa disto, o homem fica sem pecado algum. Não tendo pecado, é declarado justo pelo Senhor, é absolvido e, por isso, está justificado.
– Esta justificação, como se verifica, é gratuita (Rm.3:24), ou seja, não depende de nenhuma ação que tenha de ser feita pelo pecador.
Quando vamos à ciência do direito, aprendemos que os atos gratuitos são aqueles em que apenas uma das partes pratica um ato, assume obrigações, enquanto que a outra parte nada faz em troca.
É o que acontece, por exemplo, com a doação, em que alguém entrega o bem a outrem, que nada precisa fazer para ser beneficiado, a não ser aceitar o bem que lhe é dado.
A justificação é um ato gratuito, ou seja, o homem nada faz para obter a salvação, a não ser aceitar aquilo que já foi feito, ou seja, a morte de Jesus em nosso lugar.
– A justificação, também, é feita por intermédio da graça de Deus (Rm.3:24), ou seja, é um favor imerecido do Senhor Por isso, ao escrever aos efésios, o apóstolo Paulo diz que, pela graça, somos salvos, e isto não vem de nós, mas é dom de Deus (Ef.2:8).
Pelas suas próprias obras, ninguém alcança a salvação. Tudo decorre de um favor que Deus nos dá, favor que não merecemos, pois, pelas nossas obras, todas pecaminosas, mereceríamos a morte, mas, pelo contrário, somos agraciados com a vida.
– A justificação é feita mediante a redenção que há em Cristo Jesus (Rm.3:24). Ao morrer por nós, Cristo abre a oportunidade de nos libertarmos do pecado. Jesus pagou o preço da nossa salvação e, por isso, nos comprou a liberdade.
Este ato é conhecido por “redenção”, ou seja, “o ato de remir”, o “resgate”, ou seja, “o ato de livrar (algo) de ônus por meio do pagamento”, o “ato de comprar para libertar”. Por isso, o apóstolo Pedro nos lembra que não fomos comprados com ouro, mas com o precioso sangue de Jesus (I Pe.1:18,19).
Como fomos comprados por Cristo, libertamo-nos do jugo do pecado e, por isso, não mais estamos sob condenação, alcançamos a justificação. Por isso, bem disse o poeta sacro Samuel Nyström (1891-1960): “… Jesus comprou-me da escravidão, a paz eu gozo por Seu perdão.
(…) Jesus comprou-me, e eu fiquei pra sempre livre da dura lei!…” (primeira parte da 2ª e 3ª estrofes do hino 13 da Harpa Cristã).
– É a justificação que nos permite entrar em comunhão com Deus (Rm.5:1), que faz com que as nossas vestes sejam vestes de justiça (Is.61:10), vestes que nos permitirão entrar na cidade celeste pelas portas (Ap.22:14).
– A justificação, por fim, aplica-se tanto a judeus quanto a gentios, pois resolve o problema do pecado, que é tanto de um quanto de outro povo (Rm.3:29-31).
Na verdade, a justificação faz surgir um novo povo, a igreja, formada tanto por judeus, quanto gentios, que, pelo sangue de Cristo, agora estão perto de Deus, não mais separados pela muralha do pecado (Ef.2:10-19).
IV – A PRIMEIRA PROVA BÍBLICA DA JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: ABRAÃO
– Paulo, portanto, após ter apresentado o problema do pecado e ter mostrado que ele é comum tanto a judeus quanto a gentios, apresentou a boa nova, o evangelho, qual seja, a de que o homem, mediante a fé em Jesus Cristo, pode voltar a ter comunhão com Deus, pode se libertar do pecado.
– “…A doutrina de Paulo sobre a salvação tem na justificação seu ponto de referência básico. Sua crença a respeito da justificação é a fonte da qual fluiu sua visão do cristianismo como a religião mundial de graça e fé, onde gentios e judeus aparecem em igual privilégio…” (PACKER, J.I., op.cit., p.897).
Com efeito, daí porque se considerar que a epístola aos romanos tenha sido a mais profunda reflexão do apóstolo sobre o significado da vida cristã, a síntese do propósito divino na sua vida, que era a de levar o nome de Cristo diante dos gentios, e dos reis, e dos filhos de Israel (cf. At.9:15 “in fine”).
– Mas, ao receber a inspiração do Espírito Santo, para demonstrar o caráter universal da obra de Cristo, algo até então não devidamente alcançado pelos demais apóstolos, Paulo recorreu às Escrituras, a fim de que elas pudessem testemunhar o seu pensamento.
Que linda lição a de Paulo! Mesmo cheio do Espírito, mesmo consciente de sua chamada ministerial e do significado da vida com Cristo, não ousou trazer aos crentes de Roma uma exposição da doutrina sem que, para tanto, tivesse o respaldo das Escrituras (na época, apenas o Antigo Testamento).
Quantos, hoje em dia, em nome de sua chamada ministerial genuína, em nome da sua experiência com Deus, não têm o atrevimento de falar e expor doutrinas sem se preocuparem em ser corroborados pela Palavra de Deus…
Se estes assim procedem, nós, se somos verdadeiramente servos de Deus, devemos, sempre, fazer como os judeus de Bereia (At.17:11) e conferir nas Escrituras se as coisas se sucedem como afirmam estes ensinadores.
– Paulo, entretanto, não era destes “aventureiros” dos nossos dias, dias repletos de falsos mestres.
Paulo foi buscar nas Escrituras o fundamento para o que havia dito e explanado aos romanos, até porque já havia afirmado que a justiça de Deus se manifestara com “o testemunho da lei e dos profetas” (Rm.3:21b).
Esta afirmação de Paulo, aliás, é uma mostra clara de que não há qualquer incompatibilidade entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, como chegou a alegar o falso ensinador Marcião, ainda no início da história da Igreja e como muitos, inadvertidamente, repetem nos nossos dias aqui e ali, inclusive alguns segmentos ditos “evangélicos”.
A Bíblia é uma unidade, é a Palavra de Deus e, como ensinava o saudoso pastor Severino Pedro da Silva, “combina-se em cada detalhe”.
OBS: Marcião foi um influente mestre cristão, cuja data de nascimento é desconhecida, mas que morreu em 165, excluído em 144, que construiu uma doutrina que rejeitava o Antigo Testamento e não cria na encarnação de Cristo. Teve muitos adeptos e seus seguidores perduraram até o século III.
– Para comprovar que a justificação se faz pela fé em Cristo Jesus e não pela lei ou pelas obras humanas, o apóstolo toma como exemplo o caso que, em tese, lhe seria o mais desfavorável, qual seja, o caso de Abraão, de cuja descendência biológica o judeu se orgulhava e que simbolizava o próprio símbolo da comunhão de Deus com Israel, algo, a propósito, que se repetiu, posteriormente, com o islamismo, pois os muçulmanos, embora considerem Maomé como o último e maior profeta de Alá, não cessam de se dizer, também, a exemplo dos judeus, filhos de Abraão, o “primeiro islâmico”.
OBS: Dentre outras passagens do Corão, esta se destaca para a consideração de Abraão, pelos muçulmanos, como o “primeiro islâmico”: “…E quando o seu Senhor pôs à prova Abraão, com certos mandamentos, que ele observou, disse-lhe: “Designar-te-ei Imam [líder religioso, observação nossa] dos homens.
” (Abraão) perguntou: E também o serão os meus descendentes? Respondeu-lhe: Minha promessa não alcançará os iníquos. Lembrai-vos que estabelecemos a Casa, para o congresso e local de segurança para a humanidade: Adotai a Estância de Abraão por oratório.
E estipulamos a Abraão e a Ismael, dizendo-lhes: “Purificai Minha Casa, para os circundantes (da Caaba), os retraídos, os que genuflectem e se prostram. E quando Abraão implorou: Ó senhor meu, faze com que esta cidade seja de paz, e agracia com frutos os seus habitantes que crêem em Deus e no Dia do Juízo Final!
Deus respondeu: Quanto aos incrédulos dar-lhe-ei um desfrutar transitório e depois os condenarei ao tormento infernal. Que funesto destino! E quando Abraão e Ismael levantaram os alicerces da Casa, exclamaram:
Ó Senhor nosso, aceita-a de nós pois Tu és Oniouvinte, Sapientíssimo. Ó Senhor nosso, permite que nos submetamos a Ti e que surja, da nossa descendência, uma nação submissa à Tua vontade.
Ensina-nos os nossos ritos e absolve-nos, pois Tu é o Remissório, o Misericordiosíssimo(…). E quem rejeitaria o credo de Abraão, a não ser o insensato? Já o escolhemos (Abraão), neste mundo e, no outro, contar-se-á entre os virtuosos.
E quando o seu Senhor lhe disse: Submete-te a Mim!, respondeu: Eis que me submeto ao Senhor do Universo! Abraão legou esta crença aos seus filhos, e Jacó aos seus, dizendo-lhes: Ó filhos meus, Deus vos legou esta religião; apegai-nos a ela, e não morrais sem serdes submissos (a Deus).…” (2:124-128, 130-132) (Trad. de Samir El Hayek).
– Com efeito, caso a justificação venha pela fé e não pelas obras ou pelas leis, é preciso que Paulo enfrente a questão atinente a Abraão, cujo conceito judaico era de que Abraão havia conquistado o favor de Deus por causa de suas boas obras, pensamento que até hoje vigora no judaísmo, como, por exemplo, neste comentário de Menahem Mendel Disendruck: “…o Midrash compara o patriarca Abrão a um frasco de delicioso e precioso perfume.
Mas desde que este cheiroso perfume é transportado por diversos lugares, todos se deleitam com seu aroma.
E o Midrash continua:’Abrão, que estava cheio de boas ações e belíssimas virtudes, tinha que abandonar a sua pátria para que a sua fama e seus ensinamentos se tornassem conhecidos no mundo inteiro.’
É este ‘frasco de perfume’ — a fé monoteísta, com seus preceitos éticos — que Israel vem transportando através do mundo.” (Torá: a lei de Moisés, nota a Gn.12:1, p.29) (grifo nosso).
OBS: Entre os muçulmanos o pensamento não é diferente, pois, no islamismo, as obras são fundamentais para a salvação da pessoa, como se verifica desta passagem do Corão: “…Teu Senhor retribuirá a cada um segundo suas obras, porque Ele está bem inteirado de tudo quando fazem. Sê firme, pois, tal qual te foi ordenado, juntamente com os arrependidos, e não vos extravieis, porque Ele bem vê tudo quanto fazeis. E não vos inclineis para os iníquos, porque o fogo apoderar-se-á de vós; e não tereis, em vez de Deus, protetores, nem sereis socorridos.
E observa a oração em ambas as extremidades do dia e em certas horas da noite, porque as boas ações anulam as más. Nisto há mensagem para os que recordam. E persevera, porque Deus não frustra a recompensa dos benfeitores.…” (11:111-115) (Trad. de Samir El Hayek).
– O apóstolo, porém, consultando as Escrituras Sagradas, mostra que Abraão não foi justificado por causa de suas obras.
Não foi porque tivesse boas obras que foi chamado por Deus para sair de Ur dos caldeus e iniciar a formação de um novo povo, que fosse propriedade peculiar do Senhor, nem tampouco porque teria observado mandamentos recebidos de Deus quando ainda estava em Ur dos caldeus, como ensinam os muçulmanos (algo que, evidentemente, não era do conhecimento do apóstolo, mas que seus ensinos, inspirados pelo Espírito Santo e que fazem parte da sempiterna Palavra de Deus já refutam antes mesmo que fossem criados pela imaginação humana).
Abraão foi justificado diante de Deus porque creu em Deus e isto lhe foi imputado por justiça, como nos afirma Gn.15:6.
– Depois de ter retornado da guerra contra o rei de Sinar e seus aliados, o mais bem equipado exército daquele tempo, Abrão parecia estar em dúvida ante a promessa divina que recebera há alguns anos sobre sua descendência.
Vivia só, pois Ló, quem ele imaginara constituir seu herdeiro, o havia deixado e, mesmo depois da guerra empreendida, havia preferido manter-se em Sodoma a tornar a conviver com o tio.
Por causa disto, pensara mesmo constituir como herdeiro o mordomo de sua casa, Eliezer, que, entretanto, era damasceno, ou seja, não pertencia sequer a sua nação caldeia. Diante deste impasse, o Senhor aparece ao patriarca e proclama ser o seu escudo, o seu grandíssimo galardão (Gn.15:1,2).
– Abrão, então, relata toda a sua apreensão ao Senhor e como que “cobra” a promessa divina de que teria descendência.
A esta “cobrança”, o Senhor responde com uma ordem para que Abrão saísse da sua tenda e olhasse o céu, que estava estrelado, tendo, então, prometido ao patriarca que a sua descendência seria tão numerosa quanto as estrelas que ele contemplava.
Abrão, então, diz-nos a Escritura, creu na palavra do Senhor e, por causa disto, foi justificado, foi considerado e declarado justo por Deus.
Não foram, portanto, as obras que fizera até então que o justificou, mas o ato de ter crido na palavra do Senhor, ou seja, a sua fé em Deus foi o motivo pelo qual foi justificado diante de Deus.
– Ao assim demonstrar nas Escrituras, o apóstolo retira todo e qualquer valor às obras feitas por Abraão como determinantes da sua justificação, mas tão somente a fé foi o elemento que permitiu que Abrão fosse visto como um homem justo diante de Deus.
Ao mesmo tempo, como que “matando dois coelhos com uma só cajadada”, Paulo eliminou, também, o falso conceito de que a circuncisão era necessária à justificação do homem, pois, quando Abrão foi justificado, isto se deu em momento anterior à instituição da circuncisão (cf. Rm.4:9-12), o que somente ocorreu quando Ismael, que a este tempo da justificação nem sequer havia sido gerado, tinha treze anos de idade (cf. Gn.17:23-27).
– Abraão foi justificado porque creu em Deus, porque deu crédito à Sua Palavra, crença que não tinha qualquer respaldo nos fatos então vividos por ele. Com efeito, como crer que sua descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu ou como a areia do mar, se Abraão não tinha sequer um filho e, o que é mais grave, sua mulher era estéril e já fora da idade fértil?
Entretanto, apesar de tudo isto, Abraão creu, não foi incrédulo e, assim agindo, deu glória a Deus (Rm.4:19-22).
– Este é o mesmo comportamento que devem ter os “filhos de Abraão”, ou seja, aqueles que creem na Palavra de Deus, no Verbo, em Cristo Jesus. Por isso, Jesus disse aos judeus que se eles fossem filhos de Abraão, creriam na verdade, na palavra que Ele lhes estava a dizer (Jo.8:45-47).
O verdadeiro filho de Abraão é aquele que crê em Jesus e que, por isso, escuta as palavras do Senhor e, por conseguinte, é justificado diante de Deus.
V – A SEGUNDA PROVA BÍBLICA DA JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: DAVI
– Mas, como é necessário o testemunho de dois ou três para que seja confirmada a verdade (Dt.17:6; 19:15; Hb.10:28), o apóstolo deixa a lei, onde havia demonstrado que a justificação se dá pela fé e vai para os salmos, mais precisamente para o Salmo 32, salmo atribuído a Davi, que é um “masquil”, “…um poema didático, ou seja, uma composição que apresenta introspecções divinas que, portanto, se torna instrutiva…” (THOMSON, J.G.S.S.. Salmos, livro dos. In: DOUGLAS, J.D. (org.). O novo dicionário da Bíblia, v.II, p.1461).
– Neste salmo, Davi reflete sobre o pecado e o perdão de Deus, bem como sobre a felicidade decorrente deste perdão. Começa dizendo que é bem-aventurado o homem cuja transgressão é perdoada e cujo pecado é coberto.
Ainda no tempo da lei, portanto, antes da vinda de Cristo para a remoção definitiva do pecado, já se constituía numa bem-aventurança, numa suprema felicidade, o fato de alguém ter o seu pecado coberto.
Naturalmente, o salmista se reportava, em seu cântico, ao episódio da propiciação do pecado por ocasião do dia da expiação.
– Mas como se fazia esta cobertura do pecado? Como se dava este perdão? O salmista, inspirado pelo Espírito de Deus, não hesita em dizê-lo: mediante uma não imputação de maldade ao homem por parte do Senhor.
Apesar de o homem ser pecador, tanto assim que o homem confessa o seu pecado, admite a sua culpa (Sl.32:3-5), Deus não executa o juízo, não faz descer a ira sobre o pecador, mas, antes, perdoa a maldade do pecado do homem.
– Deus, ao ver o arrependimento do pecador, cobre o pecado, perdoa-o. Por quê? Porque o homem confiou em Deus, demonstrou arrependimento, dirigiu-se a Deus, reconhecendo a sua condição de pecador e disposto a mudar de atitude.
A mão pesada do Senhor, então, torna-se em lugar de refúgio, em local de libertação e o Senhor, antes distante e causador de terror e angústia, passa a ser o próprio condutor do homem arrependido (Sl.32:8).
– Qual foi a razão pela qual Deus usou de misericórdia para com este homem pecador arrependido? Ensina-nos o salmista no seu poema instrutivo: porque ele confiou no Senhor e, por causa disto, a misericórdia de Deus o cercou (Sl.32:10). E, agora, de pecador debaixo da mão pesada do Senhor, temos um justo, um reto de coração (Sl.32:11).
– Que fez o homem, então, para obter a justificação? Tão somente confiou no Senhor. Mais uma vez, aqui, Paulo mostra com clareza que a justificação se dá pela fé e não pelas obras (Rm.4:6-8).
VI – A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ EM JESUS CRISTO NÃO DEPENDE DA LEI
– Embora o apóstolo já tivesse mostrado que a lei era incapaz de justificar o homem, volta a este argumento, agora que está a analisar as Escrituras para respaldar o seu pensamento.
Uma prova de que a lei de Moisés nada poderia justificar está no fato preciso de que Abraão, justificado pela fé, era anterior à própria lei.
Mas, como a circuncisão, estabelecida em Abraão, havia sido acolhida pela lei, poder-se-ia dizer que seria pela lei a justificação, já que a circuncisão seria o sinal de pertencimento ao povo de Israel, que, posteriormente, era o destinatário da lei.
– A circuncisão era o ato pelo qual alguém se fazia israelita. A lei era destinada a Israel e só os circuncisos poderiam ser considerados como integrantes da nação israelita.
Por isso, todo estrangeiro que se convertesse a crença em Deus tinha, necessariamente, de se circuncidar e este conceito era tão presente entre os judeus que, nos primeiros anos da igreja, não eram poucos os cristãos que entendiam que só se poderia servir a Deus, mesmo após a vinda de Cristo a este mundo, se a pessoa fosse circuncidada, polêmica que levou os discípulos a reunirem o primeiro concílio da igreja cristã, como nos relata o capítulo 15 do livro de Atos.
– O apóstolo, porém, mostra claramente que a lei, seja a lei da circuncisão, seja a lei de Moisés, não tinham poder algum para justificar o homem nem para estabelecer pré-condições para a justificação.
Abraão, diz-nos o apóstolo, foi justificado quando ainda era incircunciso, o que prova que a circuncisão papel algum exerceu na justificação pela fé. Porque tinha sido justificado pela fé, Abraão, ao ser ordenado por Deus para se circuncidar, obedeceu, mas não foi a circuncisão que o justificou, mas, sim, a sua fé, exercida antes mesmo da circuncisão.
– Diante disto, a fé está além das barreiras étnicas ou religiosas que se possam estabelecer entre os homens, mesmo quando seguimos orientações divinas.
Abraão e o povo de Israel adotaram a circuncisão porque assim lhes foi ordenado por Deus, mas é um engano circunscrever à circuncisão o exercício do poder justificador do Senhor.
Esta é uma profunda lição para nós, pois temos, sempre, a tendência a tentar limitar o amor de Deus, a tentar reduzir as amplíssimas dimensões do amor de Deus que está em Cristo Jesus, algo que Paulo dirá ser além de toda a nossa compreensão (Rm.8:38,39; Ef.3:17-21).
Por isso, não podemos, de antemão, dizer que isto ou aquilo impede a justificação pela fé em Cristo Jesus, só porque fomos chamados por Deus e seguimos esta ou aquela forma de servi-l’O. Paulo mostra-nos, com clareza, que isto além da nossa compreensão e que Deus deseja a todos salvar.
– Isto, em absoluto, nos permite cerrar fileiras com os chamados “universalistas”, ou seja, aqueles que, dizendo-se evangélicos ou não, acabam por dizer que o amor de Deus é tão grande que, ao final, todos os homens serão salvos.
Estamos aqui a dizer que, como Paulo nos mostra, não é o fato de o Senhor ter mandado os judeus se circuncidarem que a justificação se operaria pela circuncisão. Todavia, é claríssimo o ensino do apóstolo que a justificação só alcança aqueles que creem em Jesus.
Só é justificado, só não é imputado o pecado àquele que “crê n’Aquele que dos mortos ressuscitou a Jesus, nosso Senhor, O qual, por nossos pecados, foi entregue e ressuscitou para nossa justificação” (Rm.4:25).
Como Jesus deixou bem claro, quem não crer, será condenado (Mc.16:16b).
– Abraão foi justificado quando ainda incircunciso e, por isso, é a prova de que ele é pai tanto dos judeus, quanto dos gentios.
Sua descendência não é biológica, mas espiritual. Ele é pai de todos (Rm.4:11 e 16 “in fine”), tanto dos incircuncisos, pois foi justificado quando ainda era incircunciso, como também dos circuncisos, pois foi o primeiro a se circuncidar.
– Mas no que consistiu a fé de Abraão? O apóstolo responde:
a) aceitou esperar a realização da promessa de Deus, ainda que as circunstâncias lhe fossem totalmente adversas (Rm.4:18) – A fé produz esperança, ou seja, quando cremos em Deus, passamos a esperar o cumprimento da Sua Palavra. Quem espera, não se incomoda com o que está acontecendo à sua volta. Quantos, hoje em dia, ao em vez de esperar, passa a olhar para as circunstâncias, que tornam impossível a realização da promessa de Deus?
b) manteve a fé fortalecida – a fé de Abraão não foi um impulso emocional, um ímpeto. Abraão creu quando viu o céu estrelado, mas, pela manhã, quando já não era mais possível ver o céu estrelado, continuou acreditando na palavra que o Senhor lhe falara. Sua fé manteve-se constante, não se enfraqueceu.
Muitos, na atualidade, creem quando Deus fala, mas, depois, passado o ímpeto, voltam sua atenção para as circunstâncias adversas e a fé enfraquece, assim como Pedro, depois que iniciou seu inusitado passeio por sobre as águas.
Abraão, porém, não enfraqueceu na fé, não prestou atenção para as circunstâncias que tornavam naturalmente impossível o cumprimento da promessa divina.
c) não duvidou da promessa de Deus por incredulidade – o grande inimigo da fé é a dúvida. A dúvida é algo que faz gerar a incredulidade e, onde há incredulidade, não há fé. Lutero diz que “a fé é uma confiança viva e ousada na graça de Deus, tão certa e segura que um homem poderia arriscar sua vida nela mil vezes” (Commentary on Romans. Trad. J. Theodore Mueller, p.XVII) (tradução nossa de texto em inglês).
A dúvida é o campo adverso à fé e o inimigo de nossas almas inicia sua tentação sempre nos arremessando no campo da dúvida.
É ela o principal dos dardos inflamados do inimigo, que só pode ser apagado com o escudo da fé (Ef.6:16). Lembremos das palavras do Senhor a Jairo: “Não temas, crê somente” (Mc.5:36; Lc.8:50).
d) deu glória a Deus – o apóstolo mostra-nos que Abraão foi fortificado na fé dando glória a Deus. Dar “glória a Deus” não é apenas gritar esta frase, como alguns costumam fazer, muitos, aliás, não por um sentimento espiritual, mas por costume ou exibição.
Dar glória a Deus é, sobretudo, ter uma vida de boas obras, mostrar a sinceridade e realidade de nossa santidade mediante ações que demonstrem a nossa verdadeira natureza espiritual. A fé, portanto, é comprovada através de boas obras, algo, aliás, que foi muito bem salientado, no caso de Abraão, por Tiago (Tg.2:21-23).
e) estava certíssimo de que o que Deus tinha prometido também era poderoso para o fazer – o último aspecto enfatizado pelo apóstolo na fé de Abraão é a segurança.
A expressão grega traduzida na Versão Almeida Revista e Corrigida por “certíssimo” é “plerophoretheis”(πληροφορηθείς), cujo significado é “plenamente convicto”, “cheio de convicção”. Como diz R.N. Champlin, “…Abraão, entretanto, era um homem totalmente espiritual, dotado de uma fé tão completa que a mesma se tornou o fator dominante de sua vida.…” (O Novo Testamento interpretado versículo por versículo, v.3, nota a Rm.4:21, p.641).
É o mesmo sentimento que nos revela a poetisa sacra Fanny Crosby (1820-1915): “Que segurança! Sou de Jesus! Eu já desfruto as bênçãos da luz. Sou por Jesus herdeiro de Deus; Ele me leva à glória dos céus.” (1ª estrofe do hino 417 do Hinário para o Culto Cristão).
– Após ilustrar, com as Escrituras, a doutrina da justificação pela fé, o apóstolo mostrará que esta justificação produz frutos e obras, como teremos ocasião de observar na continuidade do estudo desta epístola.
Ev. Dr. Caramuru Afonso Francisco
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