LIÇÃO Nº 4 – OS BENEFÍCIOS DA JUSTIFICAÇÃO
A justificação pela fé em Cristo dá-nos acesso a bênçãos espirituais.
INTRODUÇÃO
– Na sequência do estudo da epístola aos romanos, estudaremos hoje o capítulo 5 desta carta do apóstolo Paulo.
– Neste capítulo, Paulo mostra as bênçãos espirituais decorrente da justificação do homem pela fé em Cristo Jesus.
I – A ENTRADA DO HOMEM NA GRAÇA DE DEUS
– O apóstolo Paulo mostrou, nos capítulos 3 e 4 da epístola aos romanos, que o homem é justificado pela fé em Cristo Jesus.
Quando o homem crê que Jesus é o único e suficiente Senhor e Salvador, reconhecendo a sua condição de pecador e se arrepende desta vida pecaminosa, alcança o perdão de seus pecados e, de imediato, é tornado justo diante de Deus, pois todos seus pecados são retirados e a ele é imputada a justiça de Cristo, homem que jamais pecou e que tomou sobre Si o castigo.
– Como consequência imediata desta justificação, o apóstolo diz que o homem que crê em Cristo Jesus alcança a paz com Deus (Rm.5:1), evocando aqui a profecia de Isaías que já dissera que o Messias levaria sobre Si o castigo do homem e, ao fazê-lo, trar-nos-ia a paz (Is.53:5).
– Paz, na língua hebraica (língua em que se escreveu a quase totalidade do Antigo Testamento), é “shalom”(שלם ), que, muito provavelmente, é a palavra hebraica mais conhecida no mundo. A ideia israelita de “shalom” é diferente da ideia que se disseminou posteriormente entre os povos, mormente entre os gregos.
“…As palavras hebraicas se formam a partir de radicais. A raiz da palavra shalom (שלם ) é formada pelas letras shim(ש), lâmed (ל) e mem(ם). A palavra shalem, que significa quitar, tem a mesma raiz de shalom.
Podemos, então, entender que, quando não temos dívidas, sejam elas da espécie que forem – financeiras, promessas, compromissos, deveres religiosos, morais – conseguimos estar em paz; shalem significa também – completo, íntegro, o que indica que paz significa integridade – a pessoa alcança a paz ao se tornar completa, íntegra.…” (MALCA, José Schorr e COELHO, Antonio Carlos. Shalom é mais do que paz. Jornal de ciência e de fé. dez. 2002. http://www.google.com/search?q=cache:6N7CLr58BLYJ:www.cienciaefe.org.br/jornal/dez02/mt06.htm+paz,+Talmude&hl=pt-BR Acesso em 18 dez.2004).
“…Basicamente, o vocábulo empregado no Antigo Testamento com o sentido de ‘paz’, shãlôm, significa ‘algo completo’, ‘saúde’, ‘bem estar’.…” (J.D. DOUGLAS. Paz. In: O Novo Dicionário da Bíblia. v.2, p.1233).
– Notamos que a paz, portanto, dentro do conceito do Antigo Testamento, é um estado de integridade, ou seja, um estado em que a pessoa se sente completa, se sente amparada, se sente segura, se sente inteira, o que somente é possível quando o homem está em comunhão com o seu Criador.
O ser humano foi feito para viver com Deus, foi feito para ser imagem e semelhança de Deus, para refletir a glória de Deus e, por isso, ao final de cada dia, Deus ia ao Seu encontro no jardim do Éden, para que o homem se sentisse completo. Entretanto, com o pecado, houve a separação entre Deus e o homem (Is.59:2) e o homem perdeu este sentimento de completude, de integridade, perdeu a paz.
A separação entre Deus e o homem pelo pecado é a causa da falta de paz entre os homens. É por isso que Paulo afirma que, com a obra redentora de Cristo, restaurou-se a paz. Jesus é a nossa paz (Ef.2:14), porque derrubou a parede de separação que havia entre Deus e os homens. Cristo fez a paz (Ef.2:15).
– Fora de Israel, porém, a ideia de paz era outra. Entre os gregos, cuja cultura foi determinante para a formação do pensamento ocidental, a paz era chamada de “eirene”, sendo concebida como um estado de ausência de conflitos.
A paz é considerada como sendo o estado de inexistência de guerras, o intervalo entre uma guerra e outra.
Na mitologia grega, a “paz” era uma deusa, filha de Zeus, o principal deus olímpico, e Themis, a deusa da justiça, cujo culto foi instituído em Atenas a partir de 374 a.C., quando os atenienses encerraram a sua guerra contra Esparta, a sua grande cidade rival na Grécia.
Desde então, a ideia de paz passou a ter esta ideia negativa, esta ideia de ausência de perturbação, de tranquilidade, de falta de agitação. É, precisamente, o sentido que tem a nossa conhecida expressão: “deixe-me em paz”.
Tanto é assim que, na mitologia grega, “Eirene” (a deusa da paz) era uma das “Horas”, divindades que se caracterizavam por serem divindades que personificavam alguns períodos de tempo, ou seja, a paz era considerada, entre os gregos, como algo passageiro, algo temporário.
– A ideia de paz como completude, como integridade somente veio depois da tradução das Escrituras para o grego (a chamada Septuaginta), quando, então, a “eirene” passou-se a se dar a ideia de “shalom”, até porque “shalom” foi traduzida por “eirene” naquela versão do Antigo Testamento.
OBS: Entre os árabes, a ideia de paz é similar à judaica. Veja-se, por exemplo, o que diz a respeito o comentarista da tradução em português do Corão:
“…Em contraste com os prazeres efêmeros e incertos desta vida material, existe a vida mais elevada, à qual Deus nos está constantemente exortado.
Ela é denominada O Lar da Paz. Eis que aí não há temores, desapontamentos, ou pesares. A ela todos são conclamados, mas serão escolhidos não aqueles que tiverem procurado as vantagens materiais, mas aqueles que tiverem procurado o Bom Aprazimento de Deus.
A palavra Salam (Paz) provém da mesma raiz de Islam, a Religião da Unidade e da Harmonia. …”(nota 611 da tradução de Samir El Hayek do Corão)
– Jesus, ao falar da paz, fez uma distinção entre estes dois conceitos. Nas Suas últimas instruções aos discípulos, afirmou que lhes deixava a Sua paz, que não era a paz do mundo (Jo.14:27).
A paz do mundo, conforme inferimos dos ensinos do Senhor, era uma paz precária, insegura e sujeita a temores constantes, porque era apenas a ausência de conflitos, uma ausência que não era garantida por coisa alguma.
Era a situação vivida pelos contemporâneos de Cristo, que viviam a chamada “pax romana” (i.e., a paz romana), que era o período de ausência de guerras e de conflitos nas regiões que estavam sob o domínio romano, nos governos dos imperadores César Augusto e Tibério, que logo passaria, pois se tratava de apenas uma acomodação política instável e que dependia, fundamentalmente, da eficiência dos exércitos e dos órgãos de controle do poder romano.
A paz de Cristo é “shalom”, ou seja, o sentimento de comunhão, de estar completo com a habitação divina em nosso espírito, o que se obtém apenas por se ter alcançado a salvação em Cristo Jesus. Esta é a paz descrita nas Escrituras, vivida pelos crentes e que emana das atitudes do salvo.
– Quando somos justificados pela fé em Cristo, alcançamos esta comunhão com Deus, passamos a ser um com o Senhor, que é precisamente o objetivo da missão salvífica de Cristo (Cf. Jo.17:20-23).
Quando somos tornados justos pela fé em Jesus, passamos a constituir uma unidade com o Senhor, passamos a fazer parte do Seu corpo e, deste modo, não mais fazemos o que queremos, mas o que o Senhor quer, não mais vivemos, mas Cristo passa a viver em nós (Gl.2:20).
– Quando somos justificados pela fé em Cristo Jesus, além de obtermos a paz com Deus, também entramos na graça de Deus (Rm.5:2), ou seja, passamos a desfrutar do favor imerecido de Deus. A graça de Deus traz salvação a todos homens (Tt.2:11), mas somente quem crê em Jesus Cristo alcança esta graça, passa a desfrutar deste favor imerecido do Senhor e, como consequência, a ira de Deus não mais o atingirá (Jo.3:36).
– A justificação pela fé em Cristo, portanto, faz-nos iniciar a jornada de aproximação contínua e ininterrupta a Deus, é o passo inicial para que prossigamos nossa peregrinação terrena, mas, agora, em direção aos céus, em direção à glória de Deus.
A entrada na graça faz com que nasçamos de novo, iniciemos uma nova vida. É por isso que a justificação faz nascer uma nova criatura (II Co.5:17; Gl.6:15), criatura esta que não tem a natureza pecaminosa, que é imagem e semelhança de Deus, o “homem que não peca” mencionado em I Jo.3:6. É o que os estudiosos das Escrituras denominam de “regeneração”.
– Mas, além desta nova criação, a entrada na graça de Deus faz com que mudemos a direção de nossas vidas.
Este “novo homem” passa a ser dirigido pelo Espírito Santo e, como tal, irá se aproximando dos céus, passa a trilhar o caminho apertado que leva à salvação, deixando o caminho espaçoso que antes o levava para a perdição eterna (Mt.7:13,14).
Temos aqui a “conversão”, ou seja, a mudança de direção na vida, ao início da peregrinação às mansões celestiais.
– Esta conversão faz com que alcancemos firmeza e constância em nossa vida espiritual, em nosso relacionamento com Deus.
Por isso, o apóstolo diz que, pela fé em Cristo, não só damos entrada na graça, mas nela estamos firmes, até porque, como diz o escritor aos hebreus, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se veem (Hb.11:1).
É por isso mesmo, aliás, que o Senhor Jesus disse a Pedro que só poderia confirmar os seus irmãos no dia em que se convertesse (Lc.22:32), prova de que, quando somos convertidos, quando mudamos de direção, temos condição, inclusive, de ajudar os irmãos a tomarem também esta firme decisão em suas vidas.
– A entrada na graça pela fé em Cristo Jesus também faz surgir uma nova virtude, qual seja, a esperança.
Quando entramos na graça, passamos a esperar a glória de Deus. Em Seu diálogo com Nicodemos, o Senhor Jesus diz que, quem nasce de novo, vê o reino de Deus (Jo.3:3), algo que foi muito bem ilustrado por John Bunyan na sua obra “O Peregrino”, onde mostra que quem se percebe pecador e crê em Jesus passa a ter a visão da glória celeste que o Senhor preparou para os que n’Ele crerem.
– O apóstolo Paulo mesmo demonstrou ter esta esperança quando, já em Roma e preso, escreveu a carta aos filipenses, dizendo que esperava o Salvador, o Senhor Jesus Cristo e a cidade celestial (Fp.3:20,21).
Quando entramos na graça de Deus, passamos a desejar e ansiar morar na glória divina com o Nosso Senhor e Salvador.
– Entretanto, e isto é muito importante, a entrada na graça, se nos livra da ira divina, não nos impede de ter dificuldades neste mundo, pelo contrário, faz com que passemos a ter ainda maiores dificuldades, pois, como novas criaturas, deixamos de ter a natureza do mundo, que está no maligno (I Jo.5:19), razão pela qual nos tornamos um corpo estranho que, como tal, será combatido implacavelmente pelo mundo e pelas hostes espirituais da maldade.
– Por isso, o apóstolo Paulo diz que a justificação pela fé em Cristo não nos livra de tribulações, repetindo o próprio ensinamento de Cristo Jesus aos Seus discípulos, quando disse aos Seus discípulos que, no mundo, teríamos aflições (Jo.16:33).
No entanto, estas tribulações, estas aflições não nos impedirá de glorificarmos a Deus, pois temos a convicção de que tudo o que ocorre com um filho de Deus, com alguém que está em unidade com o Senhor por Cristo Jesus, coopera para o seu bem, para a nossa vida espiritual (Rm.8:28).
– A justificação pela fé em Cristo permite que nós possamos regozijar mesmo diante das aflições, mas passamos a ter uma visão espiritual, vendo nas dificuldades que enfrentamos no mundo por estarmos nele e não mais sermos dele (Jo.17:11, 16) um meio de crescimento espiritual.
– A vida espiritual é de contínuo crescimento espiritual e as tribulações existentes no mundo têm o papel de nos fazer crescer espiritualmente, de nos aproximarmos cada vez mais do Senhor. Por isso, as tribulações geram para o homem justificado a paciência, que é capacidade de suportarmos as afrontas, de suportarmos o sofrimento, tendo uma resignação que nos faz cada vez mais semelhantes a Deus, que é também longânimo (Nm.14:18; Sl.103:8; Jn.4:2; II Pe.3:9).
A graça de Deus faz com que os males que o mundo e o diabo querem nos infligir sirva para o nosso bem, para o nosso crescimento espiritual.
– Esta paciência, por sua vez, faz gerar a experiência do salvo com o seu Deus. Quando passamos a suportar o sofrimento, tendo em vista a glória que nos está reservada, a exemplo do que fez o Senhor Jesus (Hb.12:2,3), passamos a conhecer mais o Senhor, a experimentar a comunhão com Ele, o que nos faz crescer espiritualmente.
Ter experiência com Deus é ter conhecimento cada vez maior d’Ele, é se deixar envolver por Ele, a ter intimidade com Ele. Esta experiência com Deus permite-nos ser instrumentos do poder de Deus, meios de levar os homens a glorificar ao Senhor.
– Esta experiência com Deus acaba por gerar esperança. Quando temos experiência com Deus, a nossa esperança da glória de Deus é fortificada, pois já passamos a experimentar a glória divina, temos mais intimidade com o Senhor e já passamos a sentir algo daquilo que nos está reservado quando chegarmos à eternidade.
– Esta esperança não traz confusão, pois, quando nos deixamos envolver pelo Senhor, passamos a conhecê-l’O melhor, não somos facilmente confundidos pelos falsos mestres, pelas mentiras satânicas, pelas ilusões deste mundo.
Quanto mais crescemos espiritualmente, mais firmes ficamos e menos vulneráveis ficaremos em relação às tentações.
– Este crescimento espiritual, porém, tem um ponto sublime: o amor. A justificação faz com que o amor de Deus seja derramado pelo Espírito Santo em nossos corações.
A justificação não é apenas um aspecto negativo, em que os pecados são tirados, mas tem um aspecto positivo, que é o derramamento do amor de Deus em nossos corações. Quando nos unimos a Deus, quando entramos em comunhão com Ele, passamos a participar da Sua natureza e Deus é amor (I Jo. 4:8,16).
– O apóstolo afirma que este amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo. Este amor é sublime, um amor de origem divina e que supera, por isso, toda a razão humana.
– Este amor que o Espírito Santo derrama no coração do justificado foi mostrado pelo Senhor Jesus que, por amar o homem, morreu a Seu tempo pelos ímpios, algo inimaginável, pois, segundo os padrões humanos, é até possível que um abnegado morra por um justo, por uma pessoa boa, mas ninguém o faria por uma pessoa má.
Mas foi precisamente isto que fez o Senhor Jesus, que, assim, provou o Seu amor para conosco, morrendo quando nós ainda éramos pecadores, quando ainda tínhamos a natureza pecaminosa, quando ainda éramos rebeldes contra Deus (Rm.5:6-8).
– Este amor faz com que não tenhamos, mesmo, qualquer confusão em nossa peregrinação terrena, porquanto se o Senhor Jesus deu a Sua vida por nós quando ainda éramos Seus inimigos, quanto mais, agora, que, fomos justificados pelo Seu sangue, teremos a demonstração do Seu amor.
Não temos, pois, o que temer, mesmo diante das dificuldades desta vida, pois, agora que fomos reconciliados com Deus, que passamos a ter comunhão com Ele pelo sangue de Cristo, certamente seremos sempre salvos da ira, nada poderá nos separar do Senhor (Rm.8:31-39).
II – A RETIRADA DO PECADO PELA JUSTIFICAÇÃO
– O apóstolo Paulo não se contenta em apenas mostrar as bênçãos espirituais decorrentes da justificação pela fé em Cristo, mas mostra a mudança gerada por esta justificação na condição pecaminosa do homem.
– Por isso, na sua argumentação, como que dá “um passo atrás”, a fim de mostrar qual era a condição do homem no pecado, condição esta que é completamente modificada com a justificação pela fé em Cristo Jesus, a fim de mostrar a própria grandeza da salvação.
– O apóstolo começa dizendo que o pecado entrou no mundo por um homem. É importante aqui registrar que o apóstolo, demonstrando não ser o “machista” que certos equivocados insistem em considerá-lo, não põe a culpa da entrada do pecado no mundo na mulher, que foi a primeiramente enganada pelo diabo, como nos dá conta o relato da queda em Gn.3, mas, sim, no ser humano como um todo, tanto mulher quanto homem, até porque, pelo que vemos do texto bíblico, a expressão “Adão” denominava tanto o homem quanto a mulher, pois a narrativa escriturística somente diz que Adão chamou a mulher de Eva depois de ter havido a queda (Gn.3:20).
– A entrada do pecado no mundo não é, em absoluto, algo feito por Deus, mas, sim, pelo homem.
Foi uma atitude única e exclusiva do ser humano que fez com que o pecado adentrasse no mundo físico, uma atitude de desobediência decorrente do livre-arbítrio.
Deus não fez o homem pecar, embora, ao criá-lo com o livre-arbítrio, tenha tornado o pecado possível, uma possibilidade., Entretanto, foi um ato humano que tornou o pecado uma realidade.
– Por isso mesmo, ao assim afirmar, o apóstolo Paulo mostra que Deus não pode jamais ser tido como o autor do pecado, o que contraria algumas opiniões teológicas, notadamente daqueles que defendem a chamada “predestinação incondicional”, que fazem com que Deus tenha determinado que o homem pecasse para que, através do pecado, pudesse demonstrar tanto a Sua misericórdia quanto a Sua justiça, algo que é claramente negado por esta passagem bíblica que estamos a comentar.
– Como resultado da entrada do pecado no mundo, o homem ficou separado de Deus, pois o pecado trouxe como consequência inevitável a morte, como, aliás, o próprio Deus já dissera ao homem (Gn.2:16,17). O pecado faz divisão entre Deus e os homens (Is.59:2) e, em virtude do pecado, instaura-se a inimizade entre Deus e os homens, inimizade esta que somente poderia ser tirada pela “semente da mulher” (Gn.3:15).
– Esta morte passou a todos os homens. O primeiro casal pecou e, como resultado disto, o homem não pôde mais ter comunhão com Deus, sofrendo uma alteração de sua natureza, passando a ter uma natureza decaída, depravada, que não poderia jamais se reconciliar com o seu Criador.
Há, então, uma deformidade na imagem e semelhança de Deus, de tal modo que os descendentes do primeiro casal passaram a ser concebidos em pecado (Sl.51:5), a terem uma natureza conforme a imagem e semelhança do Adão pecador e não mais do Criador (Cf. Gn.5:3).
– É sintomático que o texto sagrado mencione Sete, o primeiro homem que invocou o nome do Senhor (Cf. Gn.4:26), como alguém que fora criado à imagem e semelhança de Adão, precisamente para nos indicar que o homem, no pecado, está totalmente depravado, perdeu a sua condição de “imagem e semelhança de Deus”, não tendo, pois, condição de se salvar a si mesmo.
Pode, pela graça de Deus, invocar o nome do Senhor, clamar por Sua ajuda, como fez Sete, que, inclusive, deu origem a uma linhagem piedosa, ao primeiro povo de Deus, mas não tem condições de obter, por suas próprias forças, por seus próprios méritos, a salvação.
O pecado traz esta total depravação da natureza humana, uma natureza que se tornou pecaminosa e que não tinha, portanto, qualquer condição de escolher o bem em detrimento do mal.
– O homem não perdeu, pois, o livre-arbítrio com o pecado, como muitos defendem. O pecado, embora tenha causado a separação entre Deus e o homem, não é maior do que o próprio Deus, nem o pode ser, de modo que não poderia destruir algo que foi criado pelo Senhor.
Entretanto, este livre-arbítrio somente consegue clamar por Deus, pedir ajuda ao Senhor, capacidade esta que é fruto da graça de Deus, a chamada “graça preveniente” ou “graça preventiva”, que permite que as pessoas exerçam o seu livre-arbítrio dado por Deus, podendo então, escolher a salvação oferecida por Deus em Jesus Cristo ou rejeitar a oferta salvífica.
– Todos os homens têm esta natureza pecaminosa e, portanto, assim que adquirida a consciência, inevitavelmente pecam, escolhendo o mal e rejeitando o bem. Eis o motivo por que Cristo foi gerado por obra e graça do Espírito Santo (Lc.1:35) e é chamado propriamente de “último Adão” (I Co.15:45), porque, a exemplo do primeiro casal, foi criado reto e justo (Ec.7:29), pois, caso contrário, jamais poderia ser o Salvador, ser alguém que, adquirida a consciência, escolheria o bem e rejeitaria o mal (Is.7:14-16).
– O pecado, ademais, como ensina o apóstolo, é uma transgressão, uma desobediência à “lei de Deus”, lei esta que faz questão de mostrar que não era tão somente a lei de Moisés, seguida pelos israelitas, mas algo que já existia desde Adão, pois, quando o Senhor ordenou ao homem que não comesse da árvore da ciência do bem e do mal, já estava a estabelecer uma lei.
Por isso, a morte já reinava desde Adão até Moisés, ensinamento que tinha endereço certo, qual seja, os crentes judeus da igreja de Roma que achavam que a lei promovia a salvação, o que não era correto, já que, como o apóstolo bem demonstra, Moisés, ao receber a lei da parte de Deus e dá-la ao povo de Israel, também se encontrava sob o reino do pecado.
– Esta afirmação de Paulo, aliás, seria também deduzida pelos doutores da lei que, como nos mostra o Talmude (segundo livro sagrado do judaísmo onde se reduziu a escrito todas as tradições judaicas, mencionadas pelo Senhor Jesus em Mt.15:1-6), admitiram que, desde o Éden, já havia uma “lei divina” a disciplinar o comportamento da humanidade, preceitos estes que denominaram de “os sete preceitos dos descendentes de Noé” ou ‘as setes leis de Noé”, que seriam os mandamentos divinos destinados a todos os homens, que foram deduzidos precisamente da ordem dada por Deus a Adão (Gn.2:16,17) e, posteriormente, repetida a Noé depois do dilúvio (Gn.9).
OBS: “…Nossos mestres ensinam: sete preceitos foram ordenados aos filhos de Noé: leis sociais, para refrear da blasfêmia, idolatria, adultério, derramamento de sangue, roubo e de comer carne de um animal vivo…” (TALMUDE DA BABILÔNIA. Sanhedrin, 56a. Disponível em: http://www.come-and-hear.com/sanhedrin/sanhedrin_56.html Acesso em 04 nov. 2014) (tradução nossa de texto em inglês).
“…As Sete Leis de Noah são genericamente: Avodah zarah – Não cometer idolatria. Shefichat damim – Não assassinar. Gezel – Não roubar. Gilui arayot – Não cometer imoralidades sexuais. Birkat Hashem – Não blasfemar.
Ever min ha-chai – Não maltratar aos animais.Dinim – Estabelecer sistemas e leis de honestidade e justiça.…” (Leis de Noé. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_No%C3%A9 Acesso em 04 nov. 2014).
– Todos os homens herdaram a natureza depravada de Adão e nisto é que se constitui o chamado “pecado original”, que não é um ato pecaminoso em si, mas, sim, a natureza pecaminosa que adveio pelo fato de Adão ter pecado.
Em virtude desta natureza, Adão se apresenta como aquele que fez toda a humanidade perder a comunhão com Deus, e somente um outro Adão poderia alterar esta circunstância.
– Assim, diz o apóstolo Paulo, assim como por um homem o pecado entrou no mundo, também por um homem haveria de entrar a justiça perdida com o pecado. Por isso, Jesus veio ao mundo como um homem, homem gerado diretamente por Deus, a exemplo de Adão, para que, numa vida sem pecado, pudesse trazer a vida para a humanidade, assim como Adão trouxe a morte.
– Jesus veio ao mundo, sem pecado, já que gerado por obra e graça do Espírito Santo, tendo, em seguida, vivido neste mundo igualmente sem pecar (Cf. Jo.8:46; Hb.4:15; 9:28), até entregar a Sua vida pelos homens, a fim de tomar sobre Si os pecados de todos os homens, satisfazendo a justiça divina e, deste modo, podendo, agora, imputar a Sua justiça a todos os que n’Ele crerem.
– Jesus, jamais tendo pecado, fez-Se pecado por nós (II Co.5:21) e é por isso, aliás, que, na cruz, num determinado instante, houve a separação entre o Pai e o Filho, separação esta que fez o Senhor Jesus Se dizer desamparado (Mt.27:46; Mc.15:34), algo já profetizado pelo salmista (Sl.22:1), que é o exato momento em que os pecados do mundo são postos sobre o Senhor, que, deste modo, assume o nosso lugar, apresentando-se como sacrifício, como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo.1:29; Hb.10:1-12).
Ele mesmo é, a um só tempo, o ofertante e a oferta, sendo, por isso mesmo, o Sumo Sacerdote que, de uma vez por todas, satisfaz a justiça divina e obtém o perdão dos pecados de toda a humanidade, sendo, assim, a propiciação pelos pecados de todo o mundo (I Jo.2:2).
– Esta justificação é um “dom gratuito”, diz o apóstolo Paulo, ou seja, algo que é oferecido por iniciativa divina, que decorre da soberana vontade divina, que não depende do homem em coisa alguma para se materializar.
É um “ato gratuito”, ou seja, um ato que advém da vontade unilateral de Deus, como ensinam os cientistas jurídicos, os juristas. O ser humano que aceitar esta oferta será por ela beneficiado.
Ao homem, então, cabe tão somente crer, confiar, reconhecer que é um pecador e que precisa desta atitude divina e, com esta fé em Cristo Jesus e em Seu sacrifício vicário na cruz do Calvário, alcançará a justificação.
– Vê-se, pois, muito claramente, que, ante a gratuidade da justificação, não há que se falar na possibilidade de que esforços humanos proporcionem a salvação, de que se pode ter a salvação pelas obras, como, irremediavelmente, ensinam as falsas religiões. O homem está escravizado pelo pecado, não tem como dele se desvencilhar e, deste modo, não há o que possa fazer para se salvar.
– Na sua angústia em virtude do vazio que tem de Deus em seu interior, já que foi feito para viver com Deus, o ser humano, como diz o poeta sacro Almeida Sobrinho, “com ofertas e obras mortas, sacrifícios sem valor, enganado, pensa o homem, propiciar seu Criador.
Meios de salvar-se inventa, clama, roga em seu favor, a supostos mediadores, desprezando o Deus de amor” (segunda estrofe do hino 18 da Harpa Cristã).
Tais iniciativas são debalde, pois não há como se obter a salvação a não ser pela fé em Cristo Jesus, pois somente este “dom gratuito”, proporcionado pelo sacrifício de Cristo no Calvário, pode reverter a morte que deu entrada pelo pecado original na humanidade.
– A ofensa de um só gerou a morte para todos; também o dom gratuito de um só faz com que se reine a vida, mas a vida somente se dá por Jesus Cristo, diz bem claramente o apóstolo Paulo (Rm.5:17).
– A justificação pela fé em Cristo produz a abundância de vida e este ensino do apóstolo lembra um ensinamento do próprio Jesus que disse que vinha trazer vida abundante (Jo.10:10).
A vida abundante é esta vida repleta de bênçãos espirituais, esta comunhão eterna com o Senhor, nada tendo que ver com prosperidade financeira, como muitos têm propalado nestes dias tão difíceis que estamos a viver.
– A vida abundante, como afirma a poetisa sacra Frida Vingren, vem por Cristo e não por riquezas terrestres (“Ele nas trevas me achou, e ternamente me amou; vida abundante, gozo bastante, tenho por Quem me amou” – terceira estrofe do hino 121 da Harpa Cristã) ou, como diz o poeta sacro traduzido/adaptado por Paulo Leivas Macalão, “vida abundante de pureza e de santidade, para amarmos a Deus em verdade pela graça que Ele nos deu” (primeira estrofe do hino 374 da Harpa Cristã), “vida abundante de amor, que o Pai nos tem dado em Jesus, o Seu Filho amado, cuja vida por nós derramou” (segunda estrofe do mesmo hino), “vida abundante de Jesus, a veraz fortaleza, que nos dá do perdão a certeza e nos enche de consolação” (terceira estrofe do mesmo hino).
– Por isso, não se tratou apenas de uma recomposição da situação do homem antes do pecado, mas a graça de Deus em Cristo Jesus superou aquilo que havia sido feito pelo pecado.
Antes de pecar, Adão tinha comunhão com Deus, mas dependia do acesso à árvore da vida para se manter incorruptível, para impedir que se degenerasse fisicamente. Com a justificação, entretanto, passa a ter a esperança da glória de Deus, ou seja, sabe que, um dia, será glorificado, passando a ter um corpo que em si mesmo será incorruptível, um corpo celestial, que não dependerá, portanto, do acesso à árvore da vida para subsistir (I Co.15:42-54).
– Adão, embora estivesse em comunhão com o Senhor antes de pecar, vivia na Terra, sendo diariamente visitado pelo Senhor (Gn.3:8), enquanto que a justificação pela fé em Cristo Jesus fará com que o homem passe a morar nos céus, na nova Jerusalém, na casa do Pai (Jo.14:1-3; Ap.21:1-3).
– Adão, embora estivesse em comunhão com o Senhor antes de pecar, era pouco menor do que os anjos (Sl.8:4,5), mas, pela justificação da fé em Cristo, o homem, ao chegar à glorificação, passará a ser como os anjos de Deus nos céus (Mt.22:30), ocupando um lugar mais excelente do que os anjos, já que estará na mesma posição de Cristo homem, assentado em Seu trono (Ap.3:21), o que não é se admirar já que os salvos, como parte da Igreja, se tornarão a esposa do Cordeiro (Ap.19:7).
– A justiça de Cristo providencia o nosso acesso à graça de Deus. Jesus teve de viver entre nós e, como homem, jamais pecar, para que pudesse ser a oferta pela qual satisfaria a justiça divina e propiciaria a nossa entrada na graça de Deus.
Durante três anos e meio, assim como o cordeiro pascal, que era observado durante três dias antes de ser levado ao sacrifício para ver que não teria alguma macha ou defeito (Ex.12:5,6).
Jesus foi observado pelos homens, tendo sido solenemente declarado inocente, antes de ser sacrificado (Lc.23:4,14,22), o justo que morreu pelos injustos para levar-nos a Deus (I Pe.3:18).
– A obediência de Cristo até a morte e morte de cruz (Fp.2:8), morte que fez com que Cristo Se fizesse maldição por nós (Gl.3:13), trouxe-nos a bênção da justificação, pois nos tornamos justos por causa de Sua justiça.
É a isto que os estudiosos das Escrituras denominam de “imputação”, ou seja, consideração por Deus de uma pessoa “ como justa e merecedora de todas as recompensas a que tem direito toda pessoa justa” (STEELE, David S. e THOMAS, Curtis C. A imputação do pecado e a justiça atribuída a Cristo e ao crente. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/justificacao/imputacao_pecado_justica_steele.htm Acesso em 15 fev. 2016).
A justiça de Cristo é creditada a nós, é-nos transferida e, por causa disto, somos tidos como justos pelo Senhor.
– É por este motivo que o apóstolo Paulo diz que onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm.5:20), pois, em virtude da justificação, alcançamos posição superior a que tinham os primeiros pais antes de pecar. Aleluia!
– Mas, em virtude desta graça, que nos leva a tão sublime posição, deixamos de estar debaixo da lei divina, debaixo da senhorio de Deus? É o que o apóstolo Paulo irá explicar, como veremos na próxima lição.
Ev. Dr. Caramuru Afonso Francisco