LIÇÃO Nº 7 – PERDOAMOS PORQUE FOMOS PERDOADOS
(A PARÁBOLA DO CREDOR INCOMPASSIVO – Mt. 18:23-35)
Na parábola do credor incompassivo, Jesus nos mostra o dever de perdoar e sua relevância na vida espiritual.
INTRODUÇÃO
– Voltamos a estudar mais uma parábola registrada apenas por Mateus e que nos mostra mais um aspecto do reino de Deus. Desta feita, Jesus ilustra o dever de perdoar, que é um dever indispensável de cada filho do reino.
– Nesta parábola, Jesus mostra-nos a realidade da natureza transformada do crente, que, animado pelo amor divino, perdoa ilimitadamente. Quem não tem condição de perdoar, mostra, com este gesto, que não nasceu de novo e que não pertence, pois, ao reino de Deus.
I – AS CIRCUNSTÂNCIAS DA PARÁBOLA E A PARÁBOLA PROPRIAMENTE DITA
– Embora retornemos ao evangelho segundo escreveu Mateus, embora voltemos a falar de mais um aspecto do reino de Deus, temos uma nova circunstância, diversa das oito parábolas estudadas anteriormente neste livro. Esta parábola encontra-se no capítulo 18 de Mateus, num outro instante da narrativa do evangelista.
– No capítulo 16, Mateus revela o grande mistério divino, qual seja, a Igreja, que, fundada por Jesus, haveria de prosseguir a Sua obra durante a dispensação da graça.
Alicerçada sobre o Cristo, o Filho de Deus vivo (Mt.16:16-18), a Igreja, após o sacrifício vicário de Jesus, deveria ser o instrumento da reconciliação entre Deus e os homens, por intermédio de Cristo.
A partir de então, o evangelista começa, em sua narrativa, a indicar características desta Igreja, da agência do reino dos céus, de que tanto já se falara em seu livro.
– Logo após anunciar a Igreja, dizendo, inclusive, que o inimigo estaria sempre a batalhar contra ela (prova disso é que Satanás tomou ocasião com relação ao próprio Pedro, aquele mesmo cuja declaração proporcionara a revelação da Igreja-Mt.16:18-23),
Jesus ensinou os discípulos sobre a renúncia como condição para uma vida de comunhão com Deus(Mt.16:24-28), como também, a um pequeno grupo de discípulos, mostrou-lhes a Sua glória, na transfiguração, para comprovar que a Igreja estaria sob o manto da glória divina (Mt.17:1-13).
Em seguida, o evangelista relata mais um milagre do Senhor (Mt.17:14-23), bem como o pagamento do tributo pelo próprio Jesus, ainda que de forma miraculosa, para comprovar que o reino dos céus não nos dispensa das obrigações cívicas (Mt.17:24-27).
– Na continuidade da narrativa de Mateus, vem, então, a discussão a respeito do comportamento dos cristãos entre si, o que levou Jesus a fazer uma ilustração (veja bem, trata-se de uma ilustração, de uma imagem, de um esclarecimento e não de uma parábola), comparando o cristão a uma criança (Mt.18:1-14), tendo, então, ensinado como se deveria proceder à disciplina na Igreja (Mt.18:15-20).
É então que é confrontado por Pedro sobre o limite do perdão dentro da comunidade edificada por Ele, Jesus, o que leva o Senhor a dizer que o perdão é ilimitado (é este o significado da expressão “setenta vezes sete”) (Mt.18:20,21).
Para ilustrar o ensino a respeito do perdão que deve existir entre os filhos do reino, Jesus, então, profere a parábola do credor incompassivo.
– Vemos, portanto, que a parábola do credor incompassivo está inserida num contexto em que, após a revelação da Igreja, o evangelista procura nos dar mostras das características que devem ter os integrantes desta nova comunidade, deste novo povo edificado por Jesus.
A parábola é uma ilustração que Jesus faz a respeito do perdão ilimitado que revelara a Pedro como uma nota do caráter que deveria ter o filho do reino.
O comentarista bíblico Matthew Henry chegou mesmo a dizer, com razão, que esta parábola é uma ilustração da quinta petição do Pai nosso (Mt.6:12).
– Esta parábola só é registrada em Mateus, o que, aliás, se explica pelo fato de que se trata de uma discussão a respeito do limite do perdão, que, apesar de ser, também entre os judeus (que é o público-alvo deste evangelho), uma virtude das mais elogiáveis, encontrava certos limites entre os rabinos (os mestres judeus).
Com efeito, tendo por base algumas passagens do livro de Amós (Am.1:11,13; 2:1,6), onde se anunciava a expressão divina “por três transgressões ou por quatro”, entendia-se que uma pessoa poderia ser perdoada três ou quatro vezes por alguém, que seria este o limite do perdão a alguém.
Alguns, mais “liberais”, chegaram mesmo a afirmar que o limite do perdão seria de sete vezes, baseando-se em Pv.24:16, tendo sido, talvez, esta a discussão que levou Pedro a indagar a Jesus qual o limite de perdões que se deveria dar, adotando, inclusive, a corrente mais favorável existente.
Para sua surpresa, porém, Jesus mostra-lhe que a dimensão do reino de Deus está bem acima do mais liberal intérprete da lei. Simplesmente, não haveria limite para o perdão.
Não se teria sete perdões, mas, muito mais do que isto, setenta vezes sete, expressão que não significa, literalmente, quatrocentas e noventa vezes, mas que tem como sentido “sempre”, ou seja, não há limite para o perdão entre os filhos do reino.
– É bom que se diga que os judeus não eram avessos ao perdão. A tendência de alguns é considerar os judeus como contrários ao perdão, contrapondo o perdão cristão a um suposto “olho por olho, dente por dente” da lei judaica.
O judaísmo, fruto das mesmas Escrituras que compõem o Antigo Testamento cristão, não poderia deixar de levar em conta o perdão e a misericórdia que, afinal de contas, são características do mesmo Deus que Se revelou tanto a Israel quanto à Igreja, Deus que Se mostrou a Israel como Deus piedoso e misericordioso, tardio em irar-Se (Ex.34:6; Ne.9:17; Jl.2:13; Na.1:3).
Jesus, como sempre, apenas deu a completa dimensão desta concepção judaica, que sempre teve em conta o valor e a necessidade do perdão.
OBS: “…O perdão, diziam os antigos rabinos, era um aspecto ativo do amor.
Exigia da parte do indivíduo o exercício da contenção moral e força para vencer as emoções mesquinhas e rancorosas nele porventura despertadas pela conduta hostil dos demais.
O perdão estava entre os valores éticos mais louvados pelos antigos escribas e fariseus – os mestres rabínicos de ética que viveram na Era da Segunda Comunidade na Judéia.(…).
Precedendo de dois séculos o fundador do cristianismo em Seus ensinamentos de amor, humildade, caridade e perdão, encontramos a seguinte exortação no Testamento de Gad [documento apócrifo judaico, observação nossa]:
‘ Amai-vos uns aos outros de coração e se um homem pecar contra ti, fala pacificamente com ele… e se ele se arrepender e confessar, perdoa-o…Mas se ele não se envergonhar e persistir no mal, mesmo assim perdoa-o.’…” AUSUBEL, (Nathan. Valores éticos judaicos. In: A Judaica, v.6, p.903-4).
– A parábola conta a história de um rei que chamou um de seus servos para um ajuste de contas. O servo tinha uma dívida impagável, avaliada em dez mil talentos. Sem ter com que pagar, o rei, então, manda que fossem vendidos todos seus bens, bem como sua mulher e filhos, para que fosse saldada a dívida.
O servo implora ao rei, então, que lhe dê um prazo para que se faça o pagamento. O rei, movido de compaixão, resolve perdoar toda a dívida e dispensa o servo.
No caminho para casa, o servo encontra um conservo, que lhe devia uma quantia irrisória, cem denários.
Exige o pagamento e o conservo, usando das mesmas palavras que o servo dirigira ao rei, pede-lhe um prazo para que se faça o pagamento.
O servo, entretanto, não usou de misericórdia e lança o conservo na prisão. Sabendo disso, os outros conservos foram avisar o rei que, enfurecido, chama o servo novamente à sua presença, denuncia-lhe a sua maldade, revoga o perdão da dívida e manda lançá-lo na prisão, deixando-o à disposição dos atormentadores. Jesus conclui dizendo que assim Seu Pai tratará os que não perdoarem as ofensas dos seus irmãos.
I – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA
(I): O REI
– A parábola é conhecida tradicionalmente como a “parábola do credor incompassivo”, ou seja, o credor que não tem compaixão, o credor que não tem misericórdia. Alguns também a denominam de “parábola do servo cruel”, “parábola do devedor implacável”.
Entretanto, embora seja esta a personagem principal da parábola, a ponto de dar-lhe o nome, não é o primeiro elemento que surge.
– Em Seu ensino sobre o reino dos céus, Jesus diz que se pode compará-lo a um certo rei que quis fazer contas com os seus servos. O primeiro elemento da parábola, portanto, é o rei, a nos demonstrar que não há como aprendermos a lição sobre o perdão se não nos voltarmos, em primeiro lugar, para o rei.
– Este rei é o símbolo de Deus. Disto temos absoluta convicção, porque Jesus, ao término da parábola, faz a aplicação, ao dizer que, assim como o rei tratou o servo incompassivo, assim Seu Pai haveria de tratar aquele que não perdoasse os seus irmãos, indicando, deste modo, que o rei outro não é senão o Pai celestial (Mt.18:35).
– O rei é o soberano, ou seja, aquele que governa sobre os demais e que não tem pessoa alguma acima de si.
Jesus dá-nos a ideia de um típico rei oriental, com sua corte, que, periodicamente, chama os seus principais assessores para um ajuste de contas. O rei é a autoridade máxima, cuja vontade é a única lei existente.
– Deus é soberano. É o Senhor da terra e dos céus, ao qual todos nós devemos prestar contas, no momento que o Senhor quiser.
Quem chamou para prestar contas foi o rei. Deus tem o direito de chamar o homem para o ajuste de contas, visto que o Senhor é o dono de tudo (Sl.24:1) e o homem, como simples mordomo, tem de prestar contas ao Senhor.
– Observemos, porém, que este ajuste de contas não é um ajuste de contas geral. O rei não chamou para este ajuste todos os seus súditos, mas, sim, pessoas que pertenciam à sua corte.
O servo chamado era uma pessoa que gozava de grande confiança do rei, a ponto de lhe ter sido emprestada uma quantia extremamente grande do tesouro real.
O rei não iria fazer um empréstimo desta natureza a qualquer súdito, a uma pessoa comum do reino, mas a alguém que gozasse de sua confiança, a um assessor especial, para nos utilizarmos de uma expressão dos nossos dias.
– Este servo não era qualquer um, não era um “zé ninguém”. Prova disso é que, ao se encontrar com o outro conservo, que lhe devia, não só quase o sufocou, ou seja, usou de violência, o que seria admissível somente para quem tivesse um certo poderio na sociedade, teve autoridade para lançá-lo na prisão, ou seja, não pediu a outrem que o prendesse, mas ele mesmo o fez, prova de que possuía uma certa reputação no reino.
– Outra prova de que o servo não era qualquer súdito, mas um participante da corte, temos no fato de que, assim que o servo lançou o conservo na prisão, os outros conservos, contristados, foram, imediatamente, ao encontro do rei para lhe contar o caso.
Ora, os conservos, ou seja, companheiros do servo cruel, eram pessoas que também tinham livre acesso ao rei, tanto que logo lhe contaram o acontecido, ou seja, estava-se diante de um servo que era integrante ativo do corpo de auxiliares do rei.
– Isto nos mostra que este ajuste de contas simboliza o próprio julgamento da casa de Deus, ou seja, é uma demonstração que os servos do Senhor não estão imunes ao julgamento, pois isto decorre da nossa própria humanidade, da nossa condição de mordomos do Senhor, algo que não deixamos de ter com a salvação.
A salvação envolve o perdão dos pecados e o restabelecimento de nossa comunhão com Deus, mas, de forma alguma, retira a nossa qualidade de homens, de mordomos do Senhor. Com esta parábola, Jesus enfatiza que o julgamento é uma realidade também para a Igreja.
– O ajuste de contas é resultado da vontade de Deus. Jesus informa que o rei quis fazer contas com os seus servos.
Nada poderá impedir o nosso ajuste de contas com Deus, pois isto é resultado da Sua vontade e, sabemos todos, Deus não muda nem n’Ele há sombra de variação (Tg.1:17).
Ante a realidade da prestação de contas, cumpre-nos apenas nos preparar para ela, pois a oração do servo do Senhor deve ser apenas “seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu”.
– Há quem entenda que o acerto de contas descrito na parábola se refira única e exclusivamente ao Tribunal de Cristo.
Assim, entretanto, não entendemos. Jesus quis apenas mostrar que a salvação, que o fato de pertencermos à Igreja não nos isenta do julgamento divino.
Este julgamento, entretanto, envolve vários momentos, consoante a situação espiritual do homem: o juízo preliminar “post-mortem” (Hb.9:27), o Tribunal de Cristo (II Co.5:10) e o julgamento do trono branco (Ap.20:11-15).
– O rei, diz-nos a Palavra, apesar de ser soberano, apesar de não haver quem lhe mandasse, era compassivo. “…O senhor daquele servo, movido de íntima compaixão…” (Mt.18:27).
O rei tem compaixão. Ora, o que é compaixão? Compaixão é “…o sentimento de pesar que nos causam males alheios…” (Dicionário Koogan-Larousse), é sentir o sentimento dos outros, é compartilhar o sentimento alheio.”
…É sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um impulso altruísta de ternura para com o sofredor” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
O rei tinha esta capacidade. Pôde verificar a dor e o desespero do seu servo ao ver que perderia para sempre não só seu patrimônio, mas também seus entes queridos que, como mandava a lei daquela época, tinham de ser vendidos como escravos para que se fizesse caixa para o pagamento da dívida (cfr. II Rs.4:1).
Diante deste sentimento de compaixão, tomou uma atitude singular: ao invés de dar o prazo pedido pelo servo, resolveu perdoar a dívida. O rei é compassivo, é misericordioso, vai além da lei e do dever para eliminar uma dor de um servo seu.
– Jesus mostra-nos, portanto, que Deus é compassivo, que Deus é misericordioso, que uma nota do caráter divino é a misericórdia, é a bondade.
Por isso, a Bíblia nos diz que tudo quanto era criado por Deus era considerado “bom” (Gn.1:4,10,12,18,21,25,31), precisamente porque a marca mais presente do caráter divino é a bondade, é a Sua capacidade de fazer, de realizar o bem. Daí porque Jesus ter dito que só Deus é bom (Mt.19:17; Mc.10:18; Lc.18:19).
– Esta é a única razão pela qual o homem pode ter esperança: Deus é compassivo. Deus sente a nossa dor, a nossa aflição, a nossa tristeza.
A compaixão de Deus se intensificou ainda mais com a Sua humanização, na pessoa do Filho, humanização que se fez com o propósito de exercício desta misericórdia (Hb.2:16-18). É a Igreja, portanto, uma realidade que nasce desta plenitude de compaixão e de misericórdia.
– O rei, porém, é justo. Sua misericórdia é sua nota característica, mas isto não elimina a sua justiça. Ao tomar conhecimento da falta de misericórdia do servo incompassivo, ao verificar a injustiça cometida, não deixou de exercer a sua legítima autoridade e, como não havia ainda quitado o débito, determinou que o servo fosse conduzido à sua presença e o sentenciou, mandando-o à prisão, onde ficaria até pagar a dívida, ou seja, para sempre, já que a dívida era impagável.
Deus é bom, mas também é justo e, embora seja capaz de perdoar os homens, de desconsiderar os seus erros, não tem como deixar de dar o devido pagamento ao pecado, à injustiça, à iniquidade. Deus é um ser moral e, como tal, tem de ser justo.
– A parábola do credor incompassivo mostra-nos como o amor, a misericórdia, a compaixão não eliminam a justiça divina. Deus mostra-Se, em primeiro lugar, compassivo, misericordioso, pronto a perdoar e, não só Ele está pronto a perdoar, como, efetivamente, perdoa o homem, como o rei perdoou o servo.
Entretanto, se o servo comete injustiça, deliberadamente, porque o quis, se assim decide, Deus não terá outra coisa a fazer senão executar a lei, dar a devida sentença, a devida recompensa.
– Muitos insistem que Deus é bom e, por isso, não mandará jamais um ser humano ao inferno, ao sofrimento eterno.
Enganam-se, porém, porquanto o Senhor é bom, perdoa as nossas faltas, mas, também, é justiça e, no momento apropriado, chamará os homens que se recusaram a se submeter a Ele para o devido acerto de contas, quando, então, não lhes restará coisa alguma a não ser o padecimento eterno, a eterna separação de Deus, “porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm.6:23).
– O rei é alguém que, embora seja soberano, embora detenha o poder, ouve os seus servos e os atende. Deus é um ser que tem prazer em Se comunicar com o homem, como nos revelam as Escrituras desde quando o primeiro casal desfrutava de plena comunhão com o Senhor (Gn.3:8).
Nosso Deus não tem Seus ouvidos agravados para não poder ouvir (Is.59:1). Ele está pronto a ouvir o ser humano, em especial o Seu povo, ainda que sejam provenientes de quem ninguém ouve, como o povo escravo no Egito (Ex.3:7,9) ou da estéril e incompreendida Ana (I Sm.1:13-15).
– Deus é rei, mas não Se importa em descer até o nível do miserável pecador para Lhe ouvir os pedidos (Sl.40:1). É Deus que Se inclina até onde está o necessitado e o aflito.
Sua soberania não O impede de Se dirigir até onde está o mais humilde dos homens e de estar atento ao que se lhes faz e pronto a livrá-lo (Sl.72:12).
– Os servos, na parábola, tinham livre e direto acesso ao rei, numa demonstração de que os filhos do reino também desfrutam de livre acesso a Deus, diante do “novo e vivo caminho que Ele [Jesus] nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne.” (Hb.10:20).
Temos de ter esta convicção: temos pleno acesso a Deus por intermédio de Cristo Jesus. Por isso, devemos ter “ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus” (Hb.10:19), sabendo que, sem pecado, nada nos impede de mantermos comunhão com o Senhor.
Devemos, portanto, entregar-Lhe todas as nossas agruras, todas as nossas necessidades, confiando n’Ele que sempre determinará o que for melhor para nós.
OBS: “…Só se tem ousadia quando se tem confiança em alguém ou em alguma coisa.
E nossa ousadia, conforme descreve o autor sagrado, advém do merecimento que nos é concedido ‘pelo sangue de Jesus’(…). Isto sim nos dá ousadia – e devemos colocá-la em prática!
Pois através desta confiança que temos no sangue de Jesus passamos a ter ousadia, não apenas para entrar no santuário e nos dirigirmos a Ele, como também pra pregar e, acima de tudo, buscar a santificação.…” (SILVA, Severino Pedro da. Epístola aos hebreus: as coisas novas e grandes que Deus preparou para vocês, pp.192-3).
– O rei tanto ouviu o servo incompassivo quando este lhe pediu um prazo para pagar a dívida, dando-lhe muito mais do que o que havia pedido, qual seja, o perdão de toda a dívida, como também ouviu o clamor dos conservos quando, indignados, lhe relataram a injustiça cometida pelo servo incompassivo, tomando a providência que o caso requeria. O rei, assim, sempre ouviu os clamores, mas tomou a decisão que lhe aprouve tomar.
– Isto nos mostra, também, que o rei está atento ao clamor dos seus servos, mas que não abre mão do seu direito de decisão. Deus está atento aos nossos pedidos, ouve-os, mas decide conforme a Sua vontade.
Esta realidade, que nos é trazida, de forma cristalina, pela parábola, tem sido esquecida de muitos que devem atentar para o ensino que Jesus nos dá. O servo incompassivo pediu um prazo para fazer o pagamento, o rei lhe concedeu o perdão da dívida.
Os conservos declararam ao rei o que havia acontecido, com certeza tencionando a reparação do erro cometido, tendo o rei revogado o perdão que fora dado. O rei decidiu conforme a sua vontade, porque é o soberano, aquele cuja vontade é suprema.
– Devemos, pois, aprender esta lição. Temos todo o direito de pedir a Deus o que quisermos, temos livre acesso a Ele, já que somos Seus servos. Entretanto, Deus tem todo o direito de decidir conforme a Sua vontade, pois Ele é o Senhor.
O rei não estava obrigado a perdoar a dívida do servo incompassivo, mas o fez, dentro do seu poder.
O rei também não estava obrigado a manter o perdão diante da injustiça cometida contra o outro servo e, por isso, revogou-o.
Não devia satisfação a quem quer que fosse, já que havia dado um favor ao servo cruel de sua livre e própria iniciativa.
Não temos “direitos” contra Deus, como ensinam os pregadores da confissão positiva, pois tudo que recebemos é por graça, por favor imerecido. Lembremos disto antes que venhamos a “exigir” de Deus alguma coisa.
III – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA
(II): O SERVO
– O segundo elemento da parábola é a sua principal personagem: o servo ou credor incompassivo, também chamado de servo cruel ou de devedor implacável.
Este tem também o seu simbolismo explicitamente mencionado por Jesus na conclusão da parábola: é o discípulo de Jesus que não perdoar do coração as ofensas de seus irmãos (Mt.18:35).
– A parábola diz que se trata de um dos servos do rei. O rei quis fazer contas com os seus servos e, por isso, logo no começo, foi-lhe apresentado este servo.
A primeira característica desta personagem, portanto, é que se trata de um servo, algo que muitas vezes nos esquecemos, até por causa do título tradicional da parábola, que faz com que nos detenhamos mais no aspecto de ele ser um “credor incompassivo”.
– Tratava-se de um servo do rei. Não era um servo qualquer, como já dissemos supra. As circunstâncias da parábola permitem-nos afirmar que se tratava de uma alta autoridade do reino, de um participante da corte real. É, portanto, um filho do reino, alguém que está junto ao reinado do rei, de um assessor importante do rei.
– Esta é a condição dos integrantes da Igreja, a agência do reino de Deus aqui na Terra. Os salvos são servos de Deus, estão a Seu serviço, mas gozam de um relacionamento íntimo com o Senhor, têm livre acesso ao trono e desfrutam da confiança de Deus.
Não é à toa que, no reino milenial de Cristo, teremos participação ativa no governo pessoal de Jesus na Terra. Esta é a nossa condição atual, porque já estamos nos lugares celestiais em Cristo (Ef.1:3), já temos um sacerdócio real (I Pe.2:9; Ap.1:6; 5:10).
Se isto não se traduziu até aqui em poderes temporais, em poderes político-econômico-sociais, isto se deve ao fato de que o reino de Deus não é deste mundo (Jo.18:36), mas isto ocorrerá depois da destruição do atual sistema mundial na batalha do Armagedom (Ap.20:4).
– O servo cruel era, antes de tudo, um servo, um servo digno da confiança de seu senhor, tanto que assumiu uma enorme quantia em débitos para com ele, prova de que tinha crédito do seu senhor.
Assim são os homens: criados por Deus, tendo recebido de Deus tudo aquilo que têm, são feitos servos de Deus. Deus é o Senhor e o homem, Sua criatura, outra posição não tem senão a de servo, pois não há Senhor sem servo. Quando o salmista diz que a terra é do Senhor, está a dizer que todos os seres são Seus servos.
– A segunda característica desta personagem é de que se tratava de um devedor. O rei começou a fazer contas e logo lhe foi apresentado este servo. A maior característica deste servo, portanto, é a de que se tratava de um devedor e, mais, de um grande devedor, quiçá o maior de todos os devedores, daí porque ter sido chamado logo no início da prestação de contas.
– Esta é a situação do homem. Ele é o maior devedor de Deus na terra, porquanto foi àquele que Deus deu o domínio sobre toda a criação terrena (Gn.1:26,28; 9:1,2). A justiça divina é perfeita e, portanto, a quem mais se dá, mais se tem de cobrar (Lc.12:48).
Constituído como coroa da criação (Sl.8:4,5), o homem tem de responder diante de Deus por esta condição e, por isso, é o maior devedor de todos, motivo por que tem de suportar um destino no estado eterno, já que, de todos os seres criados sobre a terra, é o único dotado de imagem da eternidade divina, a saber: a eviternidade, ou seja, a capacidade de não ter fim, embora tenha tido princípio (Ec.3:11 ARA).
– O servo foi apresentado diante do rei e sua dívida era de dez mil talentos. Esta quantia registrada por Jesus tem o propósito de nos mostrar que se tratava de uma quantia impagável.
Pela cotação do ouro no Brasil em 2 de agosto de 2018, a quantia seria de aproximadamente R$ 7.169.424,00 (sete milhões, cento e sessenta e nove mil e quatrocentos e vinte e quatro reais).
Para que tenhamos bem a ideia de que Jesus queria transmitir que se tratava de um valor impossível de ser saldado, observemos que, segundo Russell Norman Champlin (1933-2018), o valor corresponderia a cerca de 60 milhões de denários.
Na época de Jesus, o valor dos impostos arrecadados de toda a Galileia e Pereia chegavam, quando muito, a 200 talentos e os da Judeia, Idumeia e Samaria, a 600 talentos, ou seja, o valor da dívida do servo corresponderia a doze anos e meio de arrecadação de todas as regiões habitadas por judeus na época de Jesus na Palestina!
– Esta dívida impagável simboliza o pecado do homem e o que ele representa diante de Deus.
Assim como o servo não tinha como pagar uma dívida desta natureza (que é pior do que a imensa dívida externa brasileira…), o homem não tem como saldar a dívida diante de Deus resultante do pecado que cometeu.
Como ser dotado de livre-arbítrio, de liberdade, o homem pôde escolher entre obedecer a Deus, ou não (Gn.2:16,17).
Entretanto, sua decisão acarretaria a responsabilidade pelos seus atos e, diante da opção pela transgressão, tornou-se devedor de Deus, ficou em débito, perdeu o crédito que tinha diante do Senhor.
Surgiu, assim, uma dívida para com Deus, dívida esta que é impagável, pois todos os recursos existentes no universo são insuficientes para o resgate de uma só alma (Sl.49:6-8). Somente Cristo pode resgatar esta dívida (Cl.2:14).
– Esta é a situação do homem sem Deus: diante do Senhor, quando ali se apresentar, porque, como mordomo, como criatura, tem de prestar contas ao Senhor, ao rei, terá uma dívida impagável para saldar, não tendo recursos para tanto. Na parábola, Jesus diz, claramente, que o servo não tinha com que pagar a dívida (Sl.18:25 “in initio”).
Assim é a situação do homem: não há como se pagar a dívida gerada pelo pecado.
– O pecado aqui é representado por dez mil talentos. O profeta Zacarias simboliza o pecado, ou impiedade, como um talento de chumbo, um peso de chumbo que fechava a vasilha onde estava a impiedade.
Não há como se livrar do pecado, a não ser por uma operação divina, miraculosa, como a que é efetuada na visão de Zacarias (Zc,5:8,9).
O pecado tem de ser removido, pois o homem não consegue, por si só, remover o pecado. Foi este o trabalho feito por Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo.1:29b).
– Apresentado ante a sua dívida, o servo não teve como contestá-la. O rei dispunha de todas as provas a respeito da dívida e do seu valor. Como, então, impugnar? Como, então, negar o que se devia?
Será exatamente esta a situação de todo ser humano quando tiver de comparecer perante o Reto e Supremo Juiz, seja perante o Tribunal de Cristo, seja perante o Juízo do Trono Branco.
“…Não há criatura alguma encoberta diante d’Ele, antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos d’Aquele com quem temos de tratar.”(Hb.4:13). Será que temos consciência disto?
– Cobrado, o servo não tinha com que pagar. O homem nada tem que possa satisfazer a justiça divina.
A Bíblia diz que tudo é do Senhor e, portanto, não resta coisa alguma ao homem. Nada tendo, como pode saldar a sua dívida diante de Deus, já que, voluntariamente, decidiu desobedecer-Lhe?
O servo não tinha com que pagar, o homem não tem com que satisfazer a justiça divina. É, portanto, mentirosa toda e qualquer solução que seja apresentada para a salvação do homem. O homem, por si só, não tem com que pagar.
– Dirão alguns que o homem pode, pelas obras, alcançar a salvação. Mas, tudo o que fizer de bom, não será mérito seu. Por que não? Se der esmolas, estas esmolas são resultado do seu trabalho, do seu suor.
Entretanto, se o homem pôde trabalhar, se pôde transformar alguns recursos naturais, estes recursos não eram seus, mas foram criados por Deus. Se o homem pôde trabalhar, é porque estava vivo, e a vida não é sua, é um dom de Deus.
Como podemos verificar, portanto, as obras são decorrência da atuação divina, são devidas a Deus, não ao homem.
Portanto, as obras não podem resultar em salvação para o homem, pois sua dívida com Deus não se diminui com as obras, antes são aumentadas, pois decorrentes de “empréstimos” dados por Deus ao ser humano.
– Dirão alguns que o homem pode, mediante sucessivas reencarnações, alcançar a pureza de propósitos e, assim, alcançar a salvação.
Entretanto, se a reencarnação fosse possível, seria a concessão de novas vidas ao homem. Ora, quem é o dono da vida? O homem?
Não, a vida é um dom de Deus. Portanto, quantas vidas a mais tivesse o homem, mais devedor se tornaria, vez que receberia algo que não é seu e, se não procedesse bem, tendo de reencarnar de novo, aí ficaria ainda mais devedor do que antes.
Como bem ensinou o pastor José Wellington Bezerra da Costa, presidente de honra da CGADB, a ideia da purificação pela reencarnação é uma utopia.
Se dizemos que este mundo é mau, cheio de maldade (como admitem os próprios reencarnacionistas), podemos compará-lo a um balde de lama.
Se cada ser humano for um lenço que, ao ser introduzido na terra, é manchado pelo pecado, como ficaria este lenço se fosse seguidamente jogado no balde de lama?
Será que ficaria mais limpo a cada imersão no balde, ou mais sujo? Vemos, pois, que a ideia da reencarnação é uma grande contradição. Também não há resolver a questão da salvação por esta via, pois.
– A aplicação da lei determinava uma só coisa: a execução da dívida. Naquela época, a execução da dívida se dava, primeiramente, sobre o patrimônio do devedor.
Caso o devedor não tivesse com que pagar, a dívida era executada sobre as pessoas, ou seja, as pessoas eram vendidas como escravas a fim de saldar a dívida. Em se tratando do pai de família, todos os seus filhos e sua mulher também eram vendidos (Ex.22:3; II Rs.4:1).
– Vemos, portanto, que, se fôssemos depender da lei, estaríamos irremediavelmente perdidos. A lei é boa e santa, mas nunca tem condições de salvar o homem.
A lei mandava que o servo e seus familiares fossem vendidos para que a dívida fosse paga.
Naturalmente que, pelo valor da dívida, a venda dos bens e das pessoas não daria a quitação, ou seja, a perda da liberdade, a redução à escravidão por parte do servo e de sua família não representaria a quitação da dívida, mas uma eterna escravidão.
– A lei, portanto, não livra o homem, mas, bem ao contrário, como explica Paulo na sua carta aos gálatas, torna o homem maldito, porque, inevitavelmente, o condenará à perdição (Gl.3:10). Por isso, não podemos querer nos apegar à lei, pois, por ela, jamais alcançaremos a salvação.
– Determinada esta ordem, o servo, já condenado e que estava a caminho da execução, que o reduziria à escravidão até o final da vida, pois a dívida persistiria, mesmo após a venda de tudo e de todos, não restou outra alternativa senão pedir um prazo para que efetuasse o pagamento.
É este o sentido da expressão que na Versão Almeida Revista e Corrigida se encontra como “sê generoso para comigo” e, em outras versões, “tem paciente comigo” ou “sê paciente comigo”:
“…a ideia principal é o pedido de prazo. Às vezes, o vocábulo também significa simplesmente uma paciência prolongada, longanimidade.…” (CHAMPLIN, R.N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo, com. Mt.18:26, v.1, p.474).
– O pedido de prazo do servo era tão somente um expediente de postergação da aplicação da justiça. Ele não tinha com que pagar e não conseguiria meios para fazê-lo, já que a dívida estava altíssima e não havia como obter estes recursos.
Tratava-se de um simples apelo à boa vontade do rei, um verdadeiro pedido de misericórdia. O servo pede que o rei tenha paciência, tenha longanimidade, adie a execução da dívida.
Era mais ou menos este o sentido do sacrifício anual feito no lugar santíssimo pelo sumo sacerdote na dispensação da lei.
O objetivo era tão somente adiar a execução da dívida, “…porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes ire os pecados…” (Hb.10:4).
Por isso, era dito que bem-aventurado aquele cujo pecado fosse coberto (Sl.32:1). Era apenas uma medida paliativa, um pedido de adiamento da execução da sentença.
– Há quem veja neste pedido do servo já um sinal de seu caráter. Assim entendeu Martinho Lutero, para quem o servo, ao agir assim, não reconhecia a gravidade de sua situação e tencionava tão somente ganhar tempo. Assim, entretanto, não achamos.
Cremos que, nesta atitude, o servo fez o que poderia fazer, ou seja, apelar para a misericórdia, para a compaixão, para a generosidade do rei. Não tinha como apelar à lei nem aos fatos.
Restava como única esperança o sentimento de compaixão do rei, a sensibilidade do rei, pessoa que era sua conhecida, pois, durante anos, valeu-se desta bondade para conseguir os seguidos empréstimos que recebera.
– O servo não era um indivíduo mal-intencionado, não era alguém que buscava um “jeitinho brasileiro”, um sem-caráter que, sabendo que sua dívida era impagável, apenas queria ganhar tempo e ludibriar o rei. Sabia que não tinha como enganar o rei. T
inha plena consciência de que o rei sabia muito bem quanto, porque, como e o que devia.
Restava a ele, tão somente, recorrer aos sentimentos do rei, que, inclusive, sabia serem nobres.
O homem não tem saída enquanto quiser usar da lei divina para se salvar, enquanto quiser conversar com Deus em termos de “direitos e deveres”, como fazem os arautos da confissão positiva.
A única esperança do homem está na bondade, na misericórdia, na graça do Senhor. “…pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef.2:8).
OBS: O jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) dizia que uma das características do nosso tempo é o fato de a humanidade ter se despertado para o problema do reconhecimento dos direitos humanos.
Parece-nos que o eminente cientista do direito tem razão, pois este discurso inclusive se inseriu na Igreja e são muitos os servos que, ao contrário do servo incompassivo, ao invés de clamarem pela graça de Deus, “exigem” os seus direitos. Como estão enganados, e Jesus, nesta parábola, nos mostra exatamente isto.
– O servo esperava do rei um prazo, uma nova demonstração de paciência, pois tudo indica que já há muito o servo estava devendo além da sua capacidade de pagamento, mas isto não havia, até então, levado o rei ao ajuste de contas.
Devemos, portanto, observar que todas as nossas ações são praticadas “sob a paciência de Deus” (Rm.3:25). Este é o período que temos antes de nossa apresentação diante do rei, antes de nosso encontro com o evangelho de Jesus Cristo.
Como diz o inspirado poeta sacro Henry Maxwell Wright (18491931), “…mas um dia senti meu pecado e vi sobre mim a espada da lei, apressado fugi, em Jesus me escondi e abrigo seguro n’Ele achei”(terceira estrofe do hino 15 da Harpa Cristã).
Neste dia, em que somos apresentados ao rei, cessa a paciência de Deus, e temos de fazer uma escolha: clamar pela misericórdia de Deus.
– O servo, diz o texto sagrado, “reverenciava” o rei, ou seja, caiu aos seus pés, prostrou-se, adorou-o, suplicando pela sua misericórdia. Não há outro lugar em que possamos obter a bênção de Deus, a misericórdia de Deus senão a Seus pés.
Como servos do rei, temos livre acesso a Ele. Podemos chegar ali com ousadia e clamarmos a Ele.
Não precisamos de outro intermediário a não ser de Cristo Jesus, que nos abriu este novo e vivo caminho. É lamentável vermos muitos, nos nossos dias, correndo atrás de mediadores para ter um encontro com Deus.
Não estamos a falar dos idólatras explícitos, mas daqueles que estão correndo atrás de servos de Deus para obter as bênçãos do Senhor, daqueles que estão participando de “encontros” para receber “unções” de A ou de B, ou, ainda, de pessoas que precisam ver e adorar anjos para terem a certeza de uma comunhão com Deus.
O servo alcançou misericórdia porque se prostrou diante do rei, mesmo depois de o rei lhe ter mandado, com seus familiares, para a venda, mesmo depois da ordem de execução. “Vamos adorar a Deus, vamos invocar Seu nome, vamos adorar a Deus!”.
– O rei, ouvindo o clamor do servo, não se conteve. Como vimos, ele é compassivo, e, por isso, fez algo que não estava sequer na imaginação do servo.
Enquanto o servo pedia um prazo para fazer o pagamento, prazo que seria mais uma tolerância, já que a dívida era impagável, o rei resolve, simplesmente, perdoar a dívida, o que lhe era possível, dada a sua condição de soberano e que não tinha que dar satisfação a ninguém (hoje, por exemplo, não podem as autoridades governamentais brasileiras anistiar devedores sem dizer como isto não irá reduzir a arrecadação).
– Jesus mostra-nos, portanto, que, por vontade unilateral de Deus, pela Sua graça, alcançamos a possibilidade não de ter um prazo maior para pagamento, não de adiamento da execução da dívida, mas, muito mais do que isto, temos a possibilidade de termos a nossa dívida simplesmente perdoada, quitada, paga.
O rei quis fazê-lo, movido de íntima compaixão e, para tanto, mandou Jesus para morrer em nosso lugar na cruz do Calvário.
Por isso, na cruz, Jesus exclamou “está consumado”, que, no original, significa, “está pago”. Jesus pagou o preço da nossa salvação, pagou, com a Sua vida sem pecado, a dívida que tínhamos para com Deus.
– Nesta parábola, Jesus não indica como se realizou o pagamento da dívida, pois não era este o Seu objetivo.
O propósito da parábola é mostrar o valor e o significado do perdão na Igreja, para o salvo, daí porque não ter adentrado nesta questão, mas é importante sabermos que o perdão realizado por Deus não se deu gratuitamente. Para nós, foi de graça, nada custou, mas, para a satisfação da justiça divina, representou o preço do sangue de Cristo (I Pe.1:18,19).
– O rei, simplesmente, resolveu perdoar a dívida. Fê-lo porque o quis e ninguém tinha coisa alguma a ver com isso.
É interessante quando vemos alguns estudiosos do judaísmo se revoltarem com a interpretação bíblica dada ao capítulo 53 de Isaías, dizendo que, em se adotando a exegese cristã, estaríamos atribuindo a Deus uma imoralidade, vez que só poderia ser considerado imoral o fato de um inocente morrer pelos culpados e obter-lhes o perdão.
Esquecem-se, porém, os doutores da lei que aqui não se está diante do legalismo, mas da soberania divina, que se está diante de um Deus cuja marca característica é a misericórdia, o amor.
Legalmente, tem-se um contrassenso, mas aqui não se trata de aplicação da lei, ou antes, a lei é a vontade do soberano, que se sobrepõe aos próprios regulamentos existentes. Como dono do crédito, era perfeitamente lícito ao rei abrir mão dele e ele o fez, por compaixão do servo.
– O perdão de Deus está exclusivamente fundado em Seu amor, em Sua misericórdia. Não há qualquer razão legal, nenhum argumento jurídico para justificá-lo.
As teses sobre a legalidade, sobre o direito deste ou daquele ser, diante da salvação, são balelas que devem ser afastadas. Jesus diz que o rei foi movido de íntima compaixão, nada mais.
O servo não tinha direito algum, seja ao perdão da dívida, seja a um novo prazo. O que lhe foi dado foi por causa da compaixão, e nada mais.
OBS: Foi, aliás, inspirado nesta passagem bíblica que o ex-chefe da Igreja Romana, o Papa João Paulo II (1920-2005) defendeu o perdão da dívida externa dos países mais pobres do mundo, algo que foi considerado como ilegal e imoral por boa parte dos banqueiros internacionais, mas que não estava fundado em direito nem em legalidade, mas tão somente na compaixão, na solidariedade internacional.
A propósito, a iniciativa papal contou com algum resultado, pois os principais governos do mundo perdoaram partes consideráveis destas dívidas, principalmente em relação aos países da África e Ásia.
– O perdão foi decidido, mas não formalizado. O texto sagrado diz que o rei soltou o servo e lhe perdoou a dívida (Mt.18:27).
Entretanto, lembremos, o rei estava fazendo ajuste de contas com os seus servos e este servo foi apresentado logo no começo do ajuste. Assim, continuava ocorrendo o ajuste, havia outros servos a serem cobrados.
O rei determinou que fosse solto e decidiu perdoá-lo, mas o perdão ainda não era definitivo. Para tanto, era necessário que se tivesse a quitação, ou seja, “…um ato pelo qual ateste inequivocamente que o devedor pagou…” (GOMES, Orlando. Obrigações. 8.ed., p.129).
É o que o povo comumente chama de “recibo”. Pois bem, segundo a lei judaica, uma obrigação assumida por escrito, somente seria considerada cancelada quando se destruísse o documento que a continha, o que, aliás, também se dava na lei romana, o que explica a figura usada pelo apóstolo Paulo na carta aos colossenses, para dizer que a nossa cédula (i.e., o documento que continha a nossa dívida) fora riscada e se encontrava cravada na cruz de Cristo (Cl.2:14).
O rei estava ainda em prestação de contas e não há notícia na parábola de que a cédula havia sido riscada, de que o perdão havia sido formalizado.
Não tinha ocorrido, portanto, a quitação, apesar de já haver a decisão de perdão, tanto que o servo foi solto e não mandado para a prisão.
OBS: “…Os sábios distinguiam, por exemplo, entre empréstimos por acordo oral e os feitos com documento assinado por testemunhas.
O último tipo constitui obrigação pública [é o caso da parábola, pois a obrigação foi cobrada publicamente pelo próprio rei, que mandou trazer o servo à sua presença em ajuste de contas, observação nossa], e, como, na maioria dos documentos, também havia achraiut nechassim (responsabilidade por propriedade, isto é, o tomador do empréstimo hipotecava toda a sua propriedade),
permitia-se ao emprestador, no caso de falta de pagamento, tomar da propriedade e bens do devedor uma quantia equivalente à do empréstimo…” (STEINSALTZ, Adin. O Talmud Essencial. In: A JUDAICA, v.7, p.222).
Vemos, pois, que o empréstimo mencionado na parábola é dos que haviam sido feitos por documento e somente haveria quitação com a destruição do documento ou sua entrega ao devedor, o que não havia acontecido.
– Isto nos fala de que o fato de termos adorado a Deus, aceitado nos submeter a Ele, assim como o servo fez diante do rei, e, por isso, termos obtido, pela graça de Deus, o perdão de nossa dívida, isto é, dos nossos pecados, não garante, de pronto, que nos mantenhamos nesta situação até o final.
Com efeito, somos perdoados e, imediatamente, somos libertos, somos soltos, pois conhecemos a verdade e a verdade nos libertou (Jo.8:36).
Entretanto, isto não significa que não se possa perdê-lo, pois ainda não houve a quitação, a formalização deste perdão.
“…Jesus, nesta parábola, ensina que o perdão divino, embora seja concedido graciosamente ao pecador arrependido, é, também, ao mesmo tempo condicional…” (BÍBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL, nota a Mt.18.35, p.1426).
– O perdão só seria tornado irreversível no instante em que, trazido novamente à presença do rei, o servo obtivesse a quitação, a destruição dos documentos do débito.
Até então, deveria continuar servindo, agora liberto da dívida, agradando ao rei. No entanto, na sequência da parábola, vemos que o servo assim não procedeu.
OBS: É interessante notar que o costume oriental era, mesmo, o de se fazer documento da dívida. O Alcorão, por exemplo, recomenda este procedimento, como vemos no versículo que ora transcrevemos:
“…Ó fiéis, quando contrairdes uma dívida por tempo fixo, documentai-a; e que um escriba, na vossa presença, ponha-a fielmente por escrito; que nenhum escriba se negue a escrever, como Deus lhe ensinou.
Que o devedor dite, e que tema a Deus, seu Senhor, e nada omita dele (o contrato). Porém, se o devedor for insensato, ou inapto, ou estiver incapacitado a ditar, que seu procurador dite fielmente, por ele.
Chamai duas testemunhas masculinas de vossa preferência, a fim de que, se uma delas se esquecer, a outra recordará. Que as testemunhas não se neguem, quando forem requisitadas.
Não desdenheis documentar a dívida, seja pequena ou grande, até ao seu vencimento. Este proceder é o mais equitativo aos olhos de Deus, o mais válido para o testemunho e o mais adequado para evitar dúvidas…” (2:282a)
– Nós, também, temos sido libertos pelo Senhor Jesus dos nossos pecados, devemos, a partir de então, correr com paciência a carreira que nos está proposta, ou seja, passar a viver de acordo com a vontade de Deus,
mantendo-nos separados do pecado a cada instante, até o fim de nossa carreira, quando, então, seremos novamente chamados à presença do Senhor, seja por ocasião de nossa morte (Hb.9:27), seja por ocasião do arrebatamento da Igreja (I Ts.4:17).
IV – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA (III): A MALDADE DO SERVO PERDOADO
– O servo saiu da presença do rei, estava livre e deveria esperar tão somente a formalização do perdão, mediante a quitação da dívida, o que ocorreria, certamente, ao término da sessão real de prestação de contas.
Eis que, diz-nos Jesus na parábola, o servo encontrou com um conservo seu, ou seja, com alguém que também estava sob o governo do rei, com alguém que pertencia ao mesmo grupo que participava da corte real.
Este conservo é identificado por Jesus como sendo um irmão (Mt.18:35), ou seja, tratava-se de um semelhante, de um outro ser humano, de um próximo, para nos utilizarmos da expressão bíblica que foi consagrada por Cristo.
– Não vamos dizer aqui que o “irmão” mencionado por Jesus represente tão somente os salvos, os “domésticos da fé” (Gl.6:10). Evidentemente que os salvos, os domésticos da fé estão incluídos aqui.
No entanto, o contexto da parábola indica-nos que Jesus não se restringiu apenas aos filhos do reino.
O “irmão” aqui é todo e qualquer ser humano. Lembremo-nos de que o servo era um pecador até há poucos instantes atrás e o conservo que encontrou não é diferente.
Jesus mostra-nos que todos os homens são iguais diante de Deus, todos são pecadores (Rm.3:23; 5:12), de modo que não existe ninguém que seja melhor do que outrem.
O pecado a todos nivela e, se obtivemos o perdão divino, isto não é decorrência de algum mérito que tenhamos tido, mas fruto único e exclusivo da graça divina.
– O servo encontrou-se com o conservo, que lhe devia uma quantia irrisória. Jesus diz que a dívida era de cem denários ou cem dinheiros, quantia correspondente a cem dias de trabalho de um assalariado, ou seja,
três meses e um terço dias de serviço, valor perfeitamente passível de pagamento por parte de alguém que, mesmo que não tivesse a posição social do servo perdoado, não era um “zé ninguém”, já que se tratava também de um servo da corte real.
A quantia era, realmente, insignificante em si mesma. Os intérpretes entendem que a quantia representava menos de 30g de ouro, ou seja, se adotada a cotação do ouro no Brasil em 2 de agosto de 2018, equivaleria a cerca de R$ 4.371,00 (quatro mil, quatrocentos e setenta e um reais), um valor que, comparado ao que fora perdoado pelo rei, corresponderia a 0,0000609675 da dívida perdoada.
– Esta dívida, irrisória diante da primeiramente relatada na parábola, representa as ofensas que os homens cometem em relação aos outros.
Este simbolismo não é obra da hermenêutica bíblica, mas fruto de interpretação autêntica, pois é o próprio Jesus quem o diz, em Mt.18:35, ao dizer que as ofensas cometidas pelos homens em relação a outros homens é simbolizada pela dívida que é cobrada pelo servo incompassivo.
Estas dívidas são, como se percebe, perfeitamente passíveis de pagamento, isto é, de reparação. Jesus, na parábola, mostra-nos, claramente, que reconhece a existência de ofensas entre os homens,
que considera legítima a existência de normas que determinem a reparação dos danos causados entre os seres humanos, tanto que, ao prescrever a lei ao Seu povo, Deus determinou regras sobre estas reparações.
No entanto, devemos observar que estes danos são infinitamente menores que as ofensas que causamos a Deus através dos nossos pecados.
– Ao encontrar o conservo, o servo não se conteve e logo lhe foi cobrar a dívida. Este comportamento, para a ética judaica, já era considerado inadequado. Havia uma regra tradicional segundo a qual
“…os empréstimos nunca devem ser cobrados dos pobres ou desafortunados.
Ainda a respeito dessa posição, o grande moralista rabínico da Renânia, Judá Chassid, morto em 1217, aconselhava: ‘Se você houver emprestado dinheiro a um pobre que não pode devolvê-lo, quando o vir aproximar-se, afaste-se discretamente, para que ele não pense que você vai cobrar…” (AUSUBEL, Nathan. Empréstimos. In: A Judaica, v.5, p.259).
Assim, a ética já mandava que o servo, ao ver o conservo, dele até se distanciasse, para que não causasse a impressão de que estaria a cobrar o débito, ainda mais quando acabara de ser perdoado de uma dívida imensamente maior.
– No entanto, ao invés de viver segundo a ética e debaixo do exemplo dado pelo rei, ao invés de se guiar pela graça, o servo preferiu seguir o caminho da lei, o caminho do legalismo e, não só não se distanciou do conservo devedor, quando fez questão de lhe cobrar, tendo, então, lançado mão dele, expressão que significa que resolveu executar a dívida, pois, caso o devedor não tivesse patrimônio, respondia com a sua própria pessoa e dos seus familiares.
O servo mostra, assim, que, apesar de ter sido alvo da benevolência, do favor do rei, preferiu seguir o caminho da lei, lei, aliás, que nunca lhe favoreceria enquanto devedor.
– Tem sido este, lamentavelmente, o caminho escolhido por muitos que alcançam a salvação em Cristo Jesus. Adotam a lei como critério de julgamento, como critério de relacionamento com os demais homens, esquecidos que, pela lei, estariam malditos diante de Deus (Gl.3:10,11,13 Tg.2:10).
Não estamos aqui a falar, em absoluto, dos judaizantes, daqueles que defendem o retorno à lei de Moisés, já existentes desde os primórdios da história da Igreja,
como nos mostram o livro de Atos dos Apóstolos ou as epístolas paulinas e aos hebreus, mas, sim, daqueles que insistem em estabelecer um relacionamento legalista com os seus semelhantes,
[os “modernos fariseus” mencionados no famoso hino sacro “Glória, glória, aleluia” da coletânea Salmos e Hinos, de autoria de J.A. dos Santos e Silva, o mais antigo hinário evangélico brasileiro.
– Muitos salvos têm, logo após o desfrute da graça multiforme de Deus, criado regras, leis e regulamentos que são impostos a outras pessoas igualmente salvas, criando um jugo, um fardo que é dificílimo de carregar.
Agem sem qualquer misericórdia, são duros e inflexíveis no relacionamento com as demais pessoas, sejam ou não crentes. São pessoas que não admitem qualquer tolerância, que não agem com o coração, mas unicamente com regras, leis e fazem questão de ser “duros na queda”.
Tais pessoas não demonstram, desta maneira, terem compreendido a salvação que desfrutaram, não revelam estar inseridas na Igreja, serem ramos da videira verdadeira.
– O salvo genuíno não usa a lei como critério de vida. O salvo genuíno teve derramado em seu coração pelo Espírito Santo o amor de Deus (Rm.5:5) e, por isso, vive de acordo com a lei do espírito de vida, em Cristo Jesus, porque foi esta a lei que o livrou da lei do pecado e da morte (Rm.8:2).
“…Ao entrar na comunidade [de Jesus, i.e., a Igreja, observação nossa], cada pessoa já recebeu do Pai um perdão sem limites (dez mil talentos).
A vida na comunidade precisa, portanto, basear-se no amor e na misericórdia, compartilhando entre todos esse perdão que cada um recebeu.…” (BÍBLIA SAGRADA, Edição Pastoral, nota a Mt.18:2135, p.1264).
“…À medida que entendemos o completo perdão de Cristo em nossa vida, devemos demonstrar uma atitude de perdão em relação aos outros. Se não o fizermos, colocamo-nos acima da lei do amor de Cristo.” (BÍBLIA DE ESTUDO APLICAÇÃO PESSOAL, nota a Mt.18.35, p.1257).
– Jesus ensinou, no sermão do monte, que a medida com que medirmos, seremos medidos (Mt.7:2) e, ao usar a lei como critério de relacionamento com o próximo, o servo mal sabia que estava decretando a sua própria sentença de morte, como veremos na conclusão da parábola de Jesus.
– O servo encontrou o conservo devedor e, sem usar de misericórdia, lançou mão dele, isto é, executou a dívida, sufocando-o e exigindo o pagamento.
Este gesto mostra o rigor do servo na exigência de seus direitos. O gesto de sufocar significa, provavelmente, que o servo fazia questão de maltratar o seu devedor, provavelmente torcendo o seu pescoço, que era um costume, inclusive entre os judeus, de levar o devedor ao tribunal com o pescoço torcido.
O servo, assim, demonstra que usava dos seus direitos nos mínimos detalhes, não deixava passar uma só vírgula daquilo que lhe era permitido por lei Estava longe de seu código as palavras do Senhor: “misericórdia quero e não sacrifício” (Os.6:6; Mt.9:13;12:7).
– O Senhor, ao nos salvar, coloca-nos à prova, para que demonstremos se estamos, ou não, verdadeiramente submissos a Ele e à Sua Palavra.
Muitas vezes, somos postos em situações que irão revelar o que há no nosso interior, a quem estamos verdadeiramente servindo.
Quando se age com extremo rigor, quando não se abre mão de direitos legítimos, quando não há qualquer tolerância, quando se age com extremismo, temos uma indicação clara e segura de que a pessoa não se encontra debaixo da orientação divina.
Os homens de cerviz dura são aqueles que não se submetem, são aqueles que não servem a Deus (Dt.10:16; 31:27; II Rs.17:14; II Cr.30:8; Ne.9:16).
É este o sentido da tão discutida máxima do sábio Salomão a respeito do mal que representa o excesso de justiça (Ec.7:16). O extremismo revela o uso da lei como critério, algo que não se coaduna com a lei do amor de Cristo, com a lei vigente na Igreja.
OBS: “…Ainda que não sejam, necessariamente, antagônicos ao meio, é muito mais fácil e aparentemente mais conveniente unir-se aos extremos do que se unir ao centro.
Baseando-se na incompreendida relatividade geral, segundo Einstein, a energia e o poder emanam do centro que libera a força motora por intermédio da inércia, portanto, a força é produzida no centro e não nos extremos, que representam apenas a reação (a força motriz).
Ela nunca poderá ser mais importante do que o meio que a produz. Assim também, o bom senso estará sempre na intermediária, entre uma e outra extremidade está o centro.
O bom senso deve ser o fiel da balança, seja qual for a situação.(…) a maioria das forças extremistas são libertinas e incoerentes com os fatos.(…).
Queremos adverti-los que, na lei de Deus e da física teórica e analítica, os extremos são lugares perigosos, seja de direita, seja de esquerda.
Os extremos são lugares eminentemente inseguros, onde, certamente, estaremos prestes a cair no vazio e sermos asfixiados pela falta de ar rarefeito suscitado pela velocidade de um corpo em queda livre, onde, quer se queria ou não, a massa será devolvida ao ponto de partida, pela força superior da gravitação que atrai todas as massas convergindo ao centro.
Se examinar esta nossa suposta teoria com coerência, verá que, se isso de fato lhe acontecer, seu corpo será projetado num abismo profundo.…” (CARVALHO , Ailton Muniz de. O Cristo Desconhecido, p.209-10).
– O conservo, então, usa das mesmíssimas palavras que o servo havia usado para o rei: “sê generoso para comigo e tudo te pagarei”. O conservo, aqui, faz a mesma súplica, só que em condições muito mais razoáveis que as que haviam sido apresentadas ao rei.
O conservo também não discute a dívida, mas pede um prazo. Este prazo, aliás, era factível, pois o valor não era elevado e, assim, o pagamento era possível, diríamos mesmo, bem provável.
Não se tratava de uma medida paliativa, de um simples adiamento de execução, pois havia a ampla possibilidade de o conservo saldar a sua dívida.
O conservo estava a pedir uma moratória, ou seja, uma dilação de prazo para que saldasse o seu débito.
Era um pedido mais do que razoável e que deveria ser atendido por uma pessoa de bom senso, mas, como disse o pastor Ailton Muniz de Carvalho, na observação supra, o bom senso não é companhia dos extremistas…
OBS: Para termos uma ideia da insensatez e da dureza manifestadas pelo servo incompassivo, lembremos que o Alcorão, conhecido por sua dureza no tratamento das questões legais, determina que se o devedor estiver em uma situação precária, deve ser concedida uma moratória:
“…Se vosso devedor se achar em situação precária, concedei-lhe uma moratória…(2:280a).”
A própria lei brasileira permite, mesmo em casos de execução de dívida já plenamente reconhecida, que o devedor, sem a possibilidade de o credor poder se opor, ofereça um parcelamento em até seis vezes, com pagamento de entrada de, no mínimo, trinta por cento do valor da dívida, como se verifica do artigo 916 do Código de Processo Civil.
– O servo, entretanto, não era animado pelo amor do rei, não tinha este amor em seu coração, não tinha a mesma natureza do rei.
Completamente esquecido do benefício que havia obtido há pouco, simplesmente não quis atender o pedido do seu devedor. Pedira um prazo impossível ao rei e recebera o perdão da dívida. Agora, nem mesmo o prazo razoável solicitado pelo seu devedor concedia. Agia, assim, embora rigorosamente dentro da lei, com injustiça, com iniquidade, pois tratara uma situação infinitamente menos grave que a sua própria com um rigor enormemente mais excessivo com o que fora tratado. Iniquidade e injustiça não se confundem com legalidade.
O servo incompassivo agira no rigor da lei, mas este rigor representava uma grande injustiça. Injustiça é iniquidade e iniquidade é pecado (I Jo.3:4 “in fine”) e pecado é o que não pode haver entre os integrantes da Igreja, entre os filhos do reino de Deus.
– O filho do reino de Deus não pode agir segundo a lei, mas sua justiça tem de superar a lei. É esta a lição que Jesus nos dá no sermão do monte (Mt.5:20).
Quem se contentar em apenas cumprir a lei (como se isto fosse possível, pois só Jesus a cumpriu), não entrará no reino de Deus. A ética do cristão é algo mais elevado, mais sublime, pois não nos pautamos pelos critérios humanos, mas pelo critério divino.
Por isso, pouco importa se a legislação civil do país se conforma a comportamentos mundanos, se aceita valores contrários à Palavra de Deus, porquanto o cidadão dos céus não vive de acordo com estas regras ou estes regulamentos, mas de acordo com a vontade do Senhor, expressa na Sua santa Palavra.
Ficamos muito tristes ao vermos alguns “crentes” que buscam justificar suas condutas antibíblicas com base em permissivos legais, ainda invocando a máxima “dai a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.
Devemos, sim, ser submissos à lei de nosso país, mas Deus exige de nós mais do que isto. Exige de nós que sejamos submissos à lei do céu, à Sua Palavra.
Como afirmou Pedro, corajosamente, aos membros do Sinédrio judaico, a suprema corte aplicadora da lei: “mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (At.5:29 “in fine”).
OBS: A superioridade da lei de Cristo frente à lei humana está bem demonstrada nestes artigos do Catecismo da Igreja Romana, que transcrevemos:
“…O respeito à pessoa humana passa pelo respeito ao princípio “que cada um, sem nenhuma exceção, deve considerar ao próximo como ‘outro eu’, cuidando, em primeiro lugar, de sua vida e dos meios necessários para vivê-la dignamente” (GS 27,1) [Constituição ‘Gaudium et Spes’, o segundo mais importante documento do Concílio Vaticano II, observação nossa].
Nenhuma legislação poderia por si mesma fazer desaparecer os temores, os prejuízos, as atitudes de soberba e de egoísmo que criam obstáculos ao estabelecimento de sociedades verdadeiramente fraternas.
Estes comportamentos só cessam com a caridade que vê em cada homem um “próximo”, um irmão.
O dever de fazerse próximo de outro e de servir-lhe ativamente se faz mais urgente todavia quando este está mais necessitado em qualquer setor da vida humana. “Quando fizestes a um destes irmãos Meus mais pequeninos, a Mim o fizestes” (Mt 25,40).
Este dever se estende aos que não pensam nem atuam como nós. O ensino de Cristo exige inclusive o perdão das ofensas. Estende o mandamento do amor que é o da nova lei a todos os inimigos (cf Mt 5,43-44).
A liberação no espírito do evangelho é incompatível com o ódio ao inimigo enquanto pessoa, mas não com o ódio ao mal que faz enquanto inimigo.” (§§.1931 a 1933).” (tradução nossa de texto oficial em espanhol).
– O servo poderia ter atendido o clamor do conservo devedor, mas o texto sagrado diz que ele não quis. Isto nos mostra, uma vez mais, o livre-arbítrio deixado ao homem.
O servo alcançara a sua salvação, fora liberto dos seus pecados, mas a salvação dependia de haver continuidade na sua vontade de servir a Deus.
O servo não quis fazer o bem ao seu semelhante, o servo não quis seguir a ética que determinava a moratória, o servo não quis usar de misericórdia. Deus quer a nossa misericórdia, Deus quer que nos guiemos pelo amor que Ele derramou nos nossos corações, mas não somos robôs, não somos autômatos, faremos se o quisermos.
O servo incompassivo perdeu a salvação e não teve mais chance de arrependimento, não porque Deus seja mau, não porque Deus seja contraditório, mas simplesmente porque o servo não quis ser salvo, não quis obedecer à lei do amor.
Para alcançarmos a salvação, precisamos perseverar até o fim (M.24:13), ou seja, precisamos querer ser salvos desde o momento do perdão dos nossos pecados até o instante de sua passagem para a eternidade, seja pela morte física, seja pelo arrebatamento da Igreja.
Amado(a), você quer ser salvo? Querer não é uma questão de falar, mas uma questão de agir!
– O servo não quis e, totalmente surdo ao clamor do conservo devedor, mandou-o à prisão até que pagasse a dívida. Este gesto do servo incompassivo mostra bem a sua crueldade.
O rei havia determinado a venda dele e de seus familiares, além dos bens, porque o montante da dívida era tão elevado que não havia outro modo de pagamento, pagamento que ainda seria parcial.
Entretanto, neste caso, o servo limitou-se a lançar o seu conservo na prisão, não porque tenha tido dó do devedor, mas porque, como a dívida era muito pequena, era esta a medida determinada para o caso, nem sequer seus familiares haviam sido atingidos.
“…O devedor também podia ser enviado para a prisão(…). Esperava-se que, enquanto estivesse na prisão, as terras do devedor fossem vendidas ou que seus parentes pagassem a dívida em seu lugar.…” (BÍBLIA DE ESTUDO APLICAÇÃO PESSOAL, nota a Mt.18:30, p.1257).
É, aliás, o que ocorre, na atualidade, nos dois únicos casos em que se permite prisão por dívida (depositário infiel e devedor de pensão alimentícia).
V – A INTERPRETAÇÃO DA PARÁBOLA (IV): A REVOGAÇÃO DO PERDÃO DA DÍVIDA DO SERVO INCOMPASSIVO
– A lei havia sido cumprida. O servo incompassivo lançara o conservo na prisão e agora só tinha de esperar o pagamento do seu crédito por parte dos familiares do conservo devedor.
Ah, também era preciso esperar o novo chamado do rei para, então, haver a quitação da sua dívida, já perdoada.
– O que o servo incompassivo não tinha observado é que seu gesto havia repercutido mal entre os seus companheiros, entre os que serviam ao rei.
Eles haviam, certamente, se regozijado quando o rei perdoara a dívida absurda do servo, mas, agora, viram como o servo agira mal ao nem sequer dar um prazo para o conservo devedor, que se encontrava preso.
O servo incompassivo esqueceu-se de que não vivia isoladamente, que tinha responsabilidades junto a sua comunidade, que pertencia a um grupo e que, portanto, jamais poderia agir de forma a causar escândalo no grupo.
Estes companheiros eram seus companheiros de serviço, como consta em algumas versões das Escrituras e, portanto, faziam parte da vida do servo, mas isto fora totalmente desconsiderado.
– Jesus fala-nos, nesta parábola, a respeito da responsabilidade social de cada filho do reino.
Cada salvo é filho do reino, ou seja, pertence a uma comunidade, a um grupo social e deve pensar não só em si, mas também nos outros.
O verdadeiro salvo é aquele que é submisso a Deus, que ama a Deus, mas que também ama o próximo, que também vive em função do outro e não de si mesmo.
O servo incompassivo não havia demonstrado compaixão, ou seja, fora incapaz de sentir o que o outro sentia, era egoísta e fechado em si mesmo.
No seu egoísmo, havia se fechado aos outros, de modo que nem se preocupara com a repercussão de seu gesto.
– O salvo deve viver uma vida de intimidade com Deus, deve ter personalidade própria, deve ser seguro de sua comunhão com o Senhor, mas esta comunhão com o Senhor o leva, sempre, a levar em consideração os outros, os seus sentimentos, as suas aspirações, as suas concepções.
Paulo mostra-nos isto, claramente, no capítulo 14 da epístola aos romanos, ao falar da necessidade que temos de não escandalizar os nossos irmãos.
Faz parte do amor “agape”, a consideração do outro e a mudança de atitudes com o intuito de não enfraquecer a fé e a caminhada do nosso companheiro de viagem no caminho estreito.
– O servo incompassivo não levou isto em consideração. Para ele, não importava o que os outros pensassem ou a repercussão de suas atitudes.
Se ele recebesse o que lhe era de direito (mesmo que não tivesse de pagar o que devia), estava tudo bem.
Quantos não pensam assim hoje nas nossas igrejas locais? Quantos não se importam nem um pouco com a sensibilidade dos mais humildes, dos mais simples? Paulo não agiu assim.
Apesar de todo o seu histórico contra o legalismo judaizante na Igreja, em nome do amor, atendeu o pedido dos anciãos da igreja em Jerusalém e procedeu como lhe foi solicitado (At.21:21-26).
– Como se verifica na parábola do joio e do trigo, aquele que causa escândalo não pertence ao grupo dos filhos do reino, mas é introduzido no meio do povo de Deus, pois é joio (Mt.13:41).
A desconsideração do outro, o egoísmo, a “santarronice”, a autossuficiência são atitudes impróprias de um verdadeiro servo de Deus.
Por isso Jesus foi tão claro ao afirmar que o causador de escândalo está em situação pior do que aquele que se atira com uma pedra ao pescoço no mar (Mt.18:6,7).
– O servo incompassivo não se incomodou com a repercussão de seu gesto, mas sua atitude havia causado a tristeza dos seus companheiros que, então, resolveram relatar o caso ao rei. Não nos iludamos.
Não há coisa mais grave na face da Terra do que causar a tristeza dos servos de Deus.
A Bíblia diz que a oração feita por um justo pode muito em seus efeitos (Tg.5:16 “in fine”), que dirá a oração feita pela reunião dos justos, pela Igreja.
A Igreja vive em contínua oração (At.12:5; I Ts.5:17), por isso ai daqueles que escandalizarem a Igreja do Senhor !
– Os companheiros contristaram-se muito e o resultado da tristeza de um crente é a oração (Tg.5:13a). Se nos contristamos com a injustiça do mundo, com as perseguições, com a impiedade, devemos orar.
A atitude dos servos de Deus não é tomar as armas na mão, como chegaram a defender os “teólogos da libertação” e alguns da “teologia da missão integral”,
nem a insubordinação e o desrespeito às autoridades constituídas (como as invasões de terra que, pasmem, são hoje acompanhadas por “igrejas evangélicas” inteiras que se montam nas comunidades dos invasores ou ações de repúdio a legítimas condenações judiciais de líderes políticos…), mas na oração.
Os companheiros do conservo devedor não partiram para a violência, mas foram pedir providências ao rei, ou seja, a Igreja, que é representada pelos companheiros, resolveu entrar na presença de Deus, ou seja, resolveu orar em prol daquela causa.
– Os companheiros, aliás, não só tomaram a atitude correta, que foi a de orar, como também oraram bem. É possível orar mal? Sim, é possível, quem o diz é o próprio Jesus que, diante das más orações dos fariseus, até resolveu ensinar os Seus discípulos a orar.
Mas, mesmo depois disto, Tiago fala-nos daqueles que pedem mal (Tg.4:3).
A oração boa, dentre outras, é aquela que tem por objetivo a satisfação da vontade de Deus e não a nossa própria. Os companheiros estavam muito tristes com a prisão do conservo devedor e com a crueldade do servo credor, mas, diz-nos a parábola, limitaram-se a declarar ao rei tudo o que se passara (Mt.18:31). Foi uma sábia oração.
Confiavam no rei e sabiam que a sua solução seria a melhor. Assim, sem negarem o seu sentimento, sem deixarem de revelar o que sentiam, deixaram que a vontade do rei fosse realizada.
A oração boa é aquela oração em que nos submetemos à vontade divina. Por isso, no modelo ensinado por Jesus, consta a cláusula “seja feita a Tua vontade”. Temos orado assim?
Não se trata de uma oração mecânica, da boca para fora, mas de uma convicção que vem do nosso íntimo, de um desejo profundo de ver em nós realizada a vontade do Senhor, seja qual for ela.
– O rei ouviu a oração dos companheiros e tomou providências. Deus ouve o clamor do Seu povo, como já tivemos ocasião de dizer ao analisarmos o rei da parábola. Chamou o servo incompassivo.
Talvez, quem sabe, tenha o servo comparecido certo de que receberia a quitação da sua dívida já perdoada, mas isto era fruto apenas de sua presunção. O rei o chama de servo malvado.
Ele era malvado, porque havia feito o mal. Fizera o que a lei lhe permitira, mas o fato de estar acobertado pela lei não retira a circunstância de que ele havia feito o mal. Quem faz o mal, não tem parte com Deus.
Pelos seus frutos os conhecereis, diz Jesus, e Seus discípulos são conhecidos pelas boas obras que realizam (Mt.5:16). Este servo, entretanto, havia feito o mal, havia pecado.
– O rei é bem claro ao servo. Não pergunta se o servo tinha ou não direito, se tinha ou não razão.
Afirma que, assim como havia usado de misericórdia, o servo deveria tê-lo feito com relação ao conservo que fora lançado na prisão. Deus exige de Seus servos perdoados o mesmo critério de graça, o mesmo critério de misericórdia.
A lei vigente na Igreja é a misericórdia, é a compaixão. O servo, por causa do perdão recebido, não estava obrigado apenas a dar a moratória pedida pelo conservo, mas estava obrigado a perdoar a dívida, assim como havia sido perdoado.
– O perdão das ofensas cometidas contra nós não é, no reino de Deus, uma faculdade, uma permissão dada ao ofendido, como é na lei civil, como é na lei dos homens, mas um dever do filho do reino.
É o perdão a nota distintiva da ética do reino de Deus e não se pode, portanto, querer pertencer a ele sem que se tenha esta qualidade de perdoar.
– Não há, talvez, uma peculiaridade tão relevante da doutrina de Cristo como o perdão. Como vimos, os judeus enaltecem a figura do perdão, têm-no como
“…o aspecto ativo do amor…” e chegam mesmo muito próximos aos ensinos de Jesus, mas não são poucos os rabinos que impõem limites a ele.
Entre os muçulmanos, o perdão é, sobretudo, uma atitude divina para com o homem, mas, quando se fala do relacionamento entre homens, é apresentado como uma recomendação, como uma atitude elogiável, mas jamais imposta como conduta obrigatória (às vezes, mesmo, é até justificada a sua negativa).
Entre aqueles que defendem a reencarnação, então, o perdão simplesmente inexiste, ante a lei do “karma” que impõe a purificação contínua para os erros cometidos. É no perdão, portanto, que se encontra uma demonstração da excelência de nossa filiação divina por intermédio de Cristo Jesus.
OBS: Vejamos alguns textos do Alcorão sobre o perdão: (1) o perdão como permissão: “…mas, se o[i.e., o devedor em situação precária, observação nossa] perdoardes, será preferível para vós, se quereis saber…(2:280b);
“…Ó fiéis, em verdade, tendes adversários entre as vossas mulheres e os vossos filhos. Precavei-vos, pois, deles. Porém, se os tolerardes, perdoarde-los e os indultardes, sabei que certamente Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo.…” (64:14); (2) o perdão negado justificado:
“…E o delito será expiado com o talião; mas, quanto àquele que indultar (possíveis ofensas dos inimigos) e se emendar, saiba que a sua recompensa pertencerá a Deus, porque Ele não estima os agressores. Contudo, aqueles que se vingarem, quando houverem sido vituperados, não serão incriminados. (42:40,41).”
– Esta realidade, aliás, ficou bem evidenciada, nos últimos tempos, nos pronunciamentos e escritos do exchefe da Igreja Romana, João Paulo II, que, como verdadeira pedra clamante (Lc.19:40), afirmou, em sua mensagem do Dia Mundial da Paz de 2002, que “…qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada?
A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão.
As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão.
(…)Mas o que significa concretamente perdoar? E perdoar porquê? … o perdão, antes de ser um facto social, tem a sua sede no coração de cada um.
Somente na medida em que se afirmam uma ética e uma cultura do perdão, é que se pode esperar numa « política do perdão », expressa em comportamentos sociais e instrumentos jurídicos, nos quais a mesma justiça assuma um rosto mais humano.
Na verdade, o perdão é primariamente uma decisão pessoal, uma opção do coração que vai de encontro ao instinto espontâneo de devolver o mal com o mal.
Tal opção tem o seu termo de comparação no amor de Deus, que nos acolhe apesar do nosso pecado, e o seu modelo supremo no perdão de Cristo que do alto da cruz rezou: « Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem » (Lc 23, 34).
O perdão tem pois uma raiz e uma medida divinas. Isto, porém, não exclui que se possa acolher o seu valor também à luz de considerações humanas razoáveis.
A primeira delas deriva da experiência que o ser humano vive em si próprio quando comete o mal: ele apercebe-se então da sua fragilidade e deseja que os outros sejam indulgentes para com ele.
Deste modo porque não fazer aos outros aquilo que cada um espera que seja feito a si próprio? Cada ser humano abriga dentro de si a esperança de poder retomar o percurso da vida sem ficar para sempre prisioneiro dos próprios erros e culpas.
Sonha poder levantar de novo o olhar para o futuro, para descobrir ainda perspectivas de confiança e empenho. Como acto humano, o perdão é antes de mais uma iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus semelhantes.
Porém, a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente não só para o bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário também a nível social.
As famílias, os grupos, os Estados, a mesma Comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a tentação de excluir os outros, negando-lhes a possibilidade de apelo.
A capacidade de perdão está na base de cada projecto de uma sociedade futura mais justa e solidária.…” (JOÃO PAULO II. Mensagem do Dia Mundial da Paz de 2002. http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/messages/peace/documents/hf_jp-ii_mes_20011211_xxxvworld-day-for-peace_po.html Acesso em 07 abr. 2005).
OBS: É bom lembrarmos aqui o que, aliás, foi ressaltado pelo ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, quando do seu pronunciamento sobre a morte de João Paulo II, ao dizer que não se poderia deixar de respeitar um homem que havia perdoado o seu próprio assassino, como fez o Papa em relação a Mehmet Ali Agca,
que tentou matá-lo em 1981 e que, inclusive, quis, não tendo sido autorizado, comparecer aos funerais do chefe da Igreja Romana. Podemos dizer que, em nossas vidas, como filhos genuínos de Deus, temos tido condutas de perdão como a de Karol Wojtyla?
– Sem o perdão, não agiremos como filhos do reino. Sem o perdão, não seremos Igreja.
Sem o perdão, não teremos como dizer que temos parte com Deus. O rei, ao verificar a falta de perdão por parte do servo, viu nele a ausência da natureza divina, viu nele a falta de comunhão com o rei.
O perdão já não mais lhe servia, pois havia cometido nova iniquidade. Não havia entrado no reino de Deus, porque não havia querido seguir a lei do amor, optara por outros caminhos, que não o caminho traçado pelo rei. Não perseverara até o fim, antes de receber a quitação, demonstrara maldade. Por isso, não formalizou o perdão, que revogou.
– Alguém poderá dizer que esta revogação contrariaria o caráter divino, já que Deus não muda e não Se arrepende. Deus não muda e não Se arrepende, mas, precisamente, por causa disto, não concedeu a quitação do débito do servo incompassivo.
O perdão, como vimos, dependia ainda de uma formalização, não havia sido dado no sentido técnico do termo. Como o que estava em jogo não era a lei, mas a vontade do rei, ele poderia, diante dos fatos, negar o seu favor.
Era uma ação justa, pois o servo incompassivo recorrera à lei, preferira a lei à graça e, assim, seria julgado conforme a lei que escolhera.
O rei não estava preso à vontade do servo, mas, como soberano, não deve satisfação a pessoa alguma, única e exclusivamente à sua consciência.
– É importante verificar que, nas legislações antigas, o senhor podia, por ingratidão do servo, inclusive revogar-lhe a concessão da liberdade. Entre os romanos, por exemplo, a ingratidão do servo em relação ao seu senhor autorizava o retorno à condição de escravo (a chamada “revocatio in servitutem”).
O servo incompassivo, reduzido que fora à condição de escravo, deveria ser grato ao seu senhor, não podia desrespeitá-lo ou ser-lhe irreverente.
Foi, precisamente, o que ocorreu. O servo não agiu segundo a lei que lhe fora dada pelo senhor e, por isso, era novamente reduzido à condição de escravo.
A dívida ainda não fora cancelada formalmente e, por isso, o servo incompassivo perdeu a oportunidade da quitação.
– Nossa cédula foi riscada e cravada na cruz de Cristo e, por isso, nossos pecados cometidos anteriormente à nossa salvação não mais são lembrados por Deus, nem são lançados em rosto (Mq.7:19; Hb.8:12).
Mas, se praticarmos o mal, se agirmos com injustiça, se não perdoarmos, estaremos deixando de fazer o bem, o que é pecado (Tg.4:7).
Ora, quem pratica o pecado é do diabo (I Jo.3:8) e, assim, não pode ser tido como um servo do Senhor (I Jo.3:6). Por isso, seu destino é ser lançado aos atormentadores para sempre, pois, como sabemos, não havia como ele pagar a sua dívida.
– É este o procedimento que Deus terá com aqueles que, perdoados de seus pecados, não perdoarem as ofensas cometidas contra si pelos homens.
“…Não se trata de legalismo ou de uma tática para amedrontar. Pelo contrário, declara a seriedade do perdão responsável e demonstra como o não perdoar bloqueia o canal de comunicação e santificação entre Deus e Seu povo…” (BÍBLIA DE ESTUDO PLENITUDE, nota a Mt.18.35, p.975).”
…Por isso, uma pessoa pode ficar sem perdão divino por ter um coração cheio de amargura, que não perdoa ao próximo(…) a amargura, ressentimento e animosidade contra o próximo são totalmente incompatíveis com a verdadeira vida cristã, e que devem ser banidos da vida do crente…” (BÍBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL, nota a Mt.18:35, p.1426).
OBS: “…Quem não sabe perdoar, não merece perdão e nem convertido é.” (SILVA, Osmar José da. Lições bíblicas dinâmicas, v.5, p.71).
– É importante aqui observar que Jesus fala da necessidade que temos de perdoar a quem nos ofende, como, aliás, já retratara na oração do Pai nosso.
Não se trata de pedirmos perdão a quem tenhamos ofendido, que é também nossa obrigação, até porque toda ofensa que fizermos ao próximo é, em primeiro lugar, ofensa que fazemos a Deus. Não obstante, quando somos perdoados dos nossos pecados, somos perdoados de todos os pecados.
O Senhor não Se lembra mais deles (Is.43:25; Mq;7:19; Hb.8:12; 10:17) e, portanto, caso tenhamos cometido ofensas contra pessoas que já não mais existem, não precisamos ficar preocupados com isto, pois Deus já nos perdoou e isto é bastante.
Não tem qualquer respaldo bíblico a prática de regressões ou outras atitudes tendentes a nos fazer “voltar ao passado” para acertarmos as contas com nossos antepassados ou com pessoas que já partiram para a eternidade.
Por terem morrido, tais pessoas não têm mais condições de nos perdoar.
A ofensa que persiste é a ofensa contra o rei, o pecado, que nos é perdoado quando aceitamos a Cristo. Assim, é disto que temos de nos preocupar.
O servo incompassivo foi cobrar a dívida do conservo que encontrou, não de um conservo que havia morrido. Não nos deixemos enganar por estes falsos ensinos que nada mais são que introdução do espiritismo no meio do povo de Deus.
OBS: “…Deus requer que o ofensor se arrependa, que haja perdão e que haja reparação pelos danos causados, sempre que for possível. Essa é uma condição básica.
O puro amor de Deus cobre uma multidão de pecados quando o indivíduo não é capaz de corrigir o erro praticado ou de restaurar o danificado, Rm.5.5-8.
Quando estas condições não podem ser preenchidas, o perdão divino é dado somente se o indivíduo, em imitação ao Senhor, for gracioso a perdoar a seus ofensores.…” (SILVA, Osmar José da. Lições bíblicas dinâmicas, v.5, p.72).
– Há quem discuta quem são os atormentadores da parábola. Entendem alguns que sejam anjos, mas não temos como definir quem o seja, até porque se trata de elemento secundário da parábola, que não se encontra no objetivo de Cristo em Seu ensino.
Aqui, entregar aos atormentadores tem o mesmo sentido do lançamento nas trevas exteriores onde há pranto e ranger de dentes, ou seja, é mais uma afirmação de Jesus de que a morte eterna não é eliminação, nem destruição, mas sofrimento eterno.
No contexto da parábola, a entrega aos atormentadores, ou aos carrascos, era uma providência para a execução da dívida.
Os verdugos, como eram chamados, eram pessoas que não só exerciam as funções de carcereiros, como também maltratavam os devedores, a exemplo do que o próprio servo havia feito antes de encerrar o conservo devedor na prisão.
A mensagem aqui é que haverá sofrimento eterno, não se podendo afirmar, com base na parábola, quem seja o agente deste sofrimento, se é que haverá algum.
– Por fim, na conclusão da parábola, Jesus dá uma interpretação autêntica, que, por isso, já foi analisada ao longo deste nosso estudo.
Ficou apenas um pormenor a ser analisado. Disse Jesus que o Seu verdadeiro discípulo perdoa “do coração” (Mt.18:35), em algumas versões, “do fundo do coração”, “do íntimo do coração.”
Isto significa que se trata, como aduziu acima a citação feita da mensagem de João Paulo II, que o perdão deve ser, antes de tudo, uma decisão pessoal, diremos mais ainda, uma manifestação que venha do interior da pessoa.
Muitos se contentam com o “perdão de boca”, com o “perdão sem esquecimento”, com o “perdão aparente”, com o “perdão cerimonial”.
OBS: É triste nos depararmos com pessoas cujo espírito vingativo é diretamente proporcional às falsas lágrimas de crocodilo que destilam em seus gabinetes…
– Entretanto, Jesus não é aquele que Se impressiona com as aparências, mas que conhece o que há no coração do homem (Jo.2:24,25).
De nada adiantam as encenações, as lágrimas de crocodilo, os choros e as representações teatrais.
O perdão deve ser algo que venha do coração, sem o que valor algum terá diante de Deus. Deus nos perdoou do Seu íntimo, de Sua própria essência e quer que assim façamos.
Somente este perdão verdadeiro, que lança no mar do esquecimento as ofensas sofridas, que não tem rancor, receio ou desconfiança, é o perdão que produz a manutenção de nossa comunhão com Deus.
Tudo o mais é hipocrisia que redundará, inexoravelmente, na entrega aos atormentadores. Aprendamos a perdoar!
Ev. Caramuru Afonso Francisco